Outono, entre outras meditações

alguns recitais cinegéticos

Estamos no Outono ─ a estação madura e das contas certas, as contas em que se sabe o que se colheu. É tempo de labutas calmas. As casas rurais ficaram fartas. Há batata amontoada nos sobrados para todo o ano, graduras e chícharos de repouso no pleno das arcas, passotas e figos secos para os mata-bichos que se avizinham, vinho e aguardente também não faltam pelo menos até ao próximo S. Martinho. Aviam-se viandas bastantes para acabar de cevar os marranchos […] As pencas só esperam por uma ligeira cozedura de carambelo e os castanheiros já arreganharam o suficiente e só aguardam um vento brandinho para semearem o chão de ouriçadas. Até os sequeiros estão [quase] repletos de lenhas grossas esgalhadas dos freixos e de lenha miúda para acendalhas.

Outono quente traz o diabo no ventre

 O Outono é a soleira do inverno  

 O frio-frio ainda não se abeirou mas a porta mantem-se aberta e as manhas zúbeas de espesso cencêno já deixam as mãos engaranhadas. Já se justificam uns serões ao escano e umas atiçadelas aos guiços da borralheira enquanto se reparam os gravanos dos lagares e as pichorras do vinho […] O outono é a estação mais calma e pintada das cores mais ricas de todo o ano. É também o passado dos frutos e o futuro das sementeiras. É presente na poda das vinhas e das árvores que se desnudaram com resignação e tranquilidade.

Quem planta no Outono leva um ano de abono

Esta ingénua alegria das ambiências rurais que estamos a desaprender e arredar das nossas memórias, na linha dos que pensam que tradição é a razão acumulada do passado, é uma celebração da racionalidade. Talvez seja por isso que a nossa ruralidade demonstre luas de sabedoria e os stressados dos  iPhones ou os ecologistas das esplanadas, as franduneiras dos centros comerciais ou as bisbilhoteiras dos chás de caridade, quanto muito, a elevem a uma vida estouvada de irracionalidade. Vem isto a propósito que …

ninguém melhor que os nossos camponeses

sabe que a história não é estática e as tradições são filhas e não bastardas da história. E [também] sabem que… se o Outono ultimou fartura às suas casas também aprontou abasto à bicharada que proporcionará meditação culinária quando o prazer da mesa se sugerir e acomodar. Aliás não é novidade nem sapiência ousada afirmar que logo após a sedentarização o primeiro divertimento social foi a caça. Ou seja, o homem cedo compreendeu que a sua primária vocação era – simplesmente – ser feliz. Actualmente queremos acreditar que o trabalho é um fadário da vida e o divertimento a pausa necessária para que a vida não tenha o destino dos conflitos da sobrevivência. Aceito, então, que a caça pode ser um alívio ao trabalho, uma comédia à vida, um desvio à infelicidade e acima de tudo, um entusiasmo desportivo de que eu, não caçador, aproveito apenas os resultados para esta meditação gastronómica. E abono que os meus amigos caçadores não caçam para matar, matam porque caçam. Julgo mesmo que a caça é o único caso [normal] em que matar uma criatura constitui o gozo de outra. Um dia alguém me questionou como se teria iniciado o homem na arte de caçar ou com mais insistência, quando se terá enfeitiçado pelo prazer da carne [?], já que inicialmente não restarão dúvidas que terá sido bicho herbívoro.

Francamente não vejo interesse em descobrir a passagem das refeições de maçãs, mel e bolotas para as primeiras provas de carne. Mas, diga-se, é muito provável que o encontro pantagruélico resultasse de uma pequena querela resolvida à pancada [!], em que o nosso antepassado levou de vencida a besta desafiante, com as inevitáveis dentadas e respectiva prova cárnea e regalo sanguíneo. Também não terá tardado a descobrir que facilmente poderia derrotar os seus comparsas animais, retirando-lhe os coiros e as lanadas para protecção às intempéries, os ossos e as queixadas como ferramentas guerreiras e naturalmente a chicha para satisfazer este primata prazer. Acontece que enquanto foi vegetariano não precisou do fogo nem mesmo para aclimatação nos dias invernais. (Ainda hoje seriamos uns bípedes à cata das lusas bolotas.) E sabe-se lá e de que forma descobriu o fogo ou o natural aproveitamento dos raios dos desatinos meteorológicos que haveriam de promover o uso e abuso do churrasco em parceria com outras festanças que os calores também prestam! Tratou-se da primeira grande alteração dos modos de vida

de vegetariano o homem passou a cru… dívoro

imediatamente se transformou no politrófico dos nossos dias. Esta fase da nossa história – criativa na arte da astúcia e da engenharia – levou a que o homem transformasse tudo quanto podia em armas e mais tarde em instrumentos domésticos ou em artefactos para a agricultura. Com o andar dos tempos, já com o invento da agricultura e da quietude da vida caseira, urdiram-se as coutadas, apenas para reis e príncipes com as delícias das caçadas e comezainas. Seja por isso, a caça que durante tanto tempo foi livre de atrancos, a partir do séc. IX/X, passou a privilégio das nobrezas. (Já os experientes fenícios e cartagineses presumiam que a caça era assunto de rico.) O senhor da Alta Idade Média isenta-se de preocupações agrícolas e o seu pensamento empresarial é dirigido para os tributos fiscais e receitas arrendatárias. Vocacionou-se para o lazer e para a guerra. E em tempos de paz conciliou estes perseguidos prazeres na cultura da força – a caça. Não será atrevimento nem injurioso dizer que ainda hoje a caça é uma verdadeira imagem de guerra, tanto no plano prático e técnico como no plano metafórico. Caçava também com o cuidado inerente à preservação das espécies. Caçava em ritmos sazonais.

Porém, a caça declinou os exercícios da sobrevivência em desfavor dos mais desprotegidos.

Tal como no presente aquele consolo desportivo foi muitas vezes posto em causa ─ Buda recusa o poder à destruição de todas as formas de vida; o sábio chinês Lao-Tseu lançou maldições contra a caça; o imperador Caracalla afogava-se em lágrimas à vista dos pobres animais mortos (…) Mas, são os romanos que a bem das tradições e da jurisprudência regulamentam a caça e os malfadados impostos cinegéticos. Protegeram-se os coutos e as coutadas, a sintaxe e a gramática venatória e obviamente os fartos banquetes onde a caça era rainha. E parece que foi assim

Celso, discípulo de Hipócrates, aconselhava a carne de cervo como fortificante para damas e matronas, Cícero, o mestre da prosa latina, rogava pelo javali nas mesas imperiais, o político Lucius Lucullus papava tordos assados ainda revestidos de penas, Heliogábalo deliciava-se com os miolos de avestruz e o seu primo Alexandre Severo, para manter a perfeição do corpo e a inveja da sua augusta Orbiana, atascava-se de lebres (…) Até a irmã do Rei Artur lamentava a frugalidade dos jovens corços assados sem nenhum condimento ou artificio, impondo acómodos mais dignos para o dito animal.

Só o povo estava proibido de caçar

quando o fazia adiantava a desculpa da apanha de cogumelos. Tal como hoje a caça hierarquizou-se: a caça disciplinada – sumptuária, a cetraria, montarias e batidas – é feita com prazer e [até] pode dispensar a morte do animal; a caça rural, sem grandes demoras e meios, pretende que a morte do animal seja uma coisa útil e de poucos riscos físicos. Caçava-se também de acordo com o conceito de que cada espécie selvagem correspondia a uma espécie doméstica. Caçar conferia um estatuto social que fez com que os romanos engenhassem parques e viveiros destes cinegéticos animais nos seus latifúndios. A caça, sendo apanágio de homens livres e de homens de armas, era a diferença social entre senhores e servidores ─ monopólio de ricos e poderosos que advogavam que a caça era carne que engordava e dava força. A carne de talho seria assunto de provisão popular. Deixemos os romanos e congéneres

acheguemo-nos a terras de Trallosmontes

onde o comodismo caseiro, as orações ao divino para que lhe poupe as colheitas, as dízimas aos senhores dos morgadios, lhe intentaram a perda de liberdade, quer pelo pavor das más-vontades do sobrenatural quer pelo medo às sanções senhoriais ou ainda pelos impostos revolucionários. Não admira, por isso, que a caça fosse considerada um luxo inútil para o abastecimento diário ou no discurso de muitos citadinos de pensamento exaltado uma matança gratuita. O que não aceito é que outros mais tacanhos cataloguem este acto venatório como um prazer cruel, praticado com violência e sem respeito à vida animal. Tivessem estes pensantes, demasiado distraídos para o trabalho agrícola, o prazer da seara e das hortas ou a necessidade da criação e entenderiam a arrelia dos camponeses. A caça deve ser compreendida – prioritariamente – como factor de equilíbrio ecológico e não só como prazer social ou acto de protecção colectivo […] Hoje, o que outrora foi um recurso de penúria para o camponês, é uma potencialidade local para a economia turística. Será pois uma condição promitente à valorização das regiões, um apetite ao consumo do território. A par das glórias locais, dos cantares e danças tradicionais, dos dialectos e histórias dos saberes, dos monumentos do passado, da paisagem natural ou humanizada, das especialidades culinárias, a caça pode ser o despertar do campo, o reencontrar e perpetuar da memória ─ a industria do dirigir o passo, orientar o olhar e consolar o estomago. Por último, presumindo desta meditação direi que o povo caçou para sobreviver e teve que ser astuto, depois foi obrigado a contemplar quem caçava e perdeu a liberdade em favor do poder, a seguir iniciou-se a observar maliciosamente os que queriam caçar. Agora auspicia que grupos de convivas e cães agitados avassalem os campos, se apoderem dos trilhos dos montes na procura da caça ainda possível e prenunciem o reanimar do tecido económico local.

Vem aí a chicha. Agora é que vamos comer!

Intento agora as minhas preferências meditativas

no sentido do prazer gastronómico e das tradições da cozinha transmontano-duriense […] Como sempre se caçou de tudo o que fosse possível, desde que o tamanho pagasse o chumbo e a pólvora ou a necessidade o exigisse, engrossou-se o nosso receituário com perdizes, lebres, coelhos, patos bravos, galinholas, narcejas, pombos, rolas, tordos (…) raposas e javalis. Desenvolveram-se comeres infindáveis, tantas vezes associados a lendas de mouras encantadas, outros de feitiços crentes, redescobertas familiares, quase todos de preparação mortificada para que a carne amaciasse e o besunho desaparecesse. Se não resultaram de criatividade própria, são, com certeza, de origens arabizadas, galaicas, castelhanas ou leonesas. São os caldos de perdiz com farrapos de nabiças – sopa rica de outono-inverno em casa de caçador rural vinhaense – as canjas de pombo bravo que os mirandeses dizem ser sopa para doente rico, as sopas de coelho – a sopa eleita para comemorar o dia de abertura da caça em casas afidalgadas bragançanas.

O coelho, cortado aos cibos, repousava numa surça de vinho branco e água fresca, com grãos de pimenta preta, cebola cortada aos quartos, folhas de louro e dentes de alho picados; ia para uma cozedura lenta nas águas da marinada e servia-se em cima de fatias de pão fritas em azeite.

São as populares sopas de caldeiro freixenistas

à base de pão, batata e da caça disponível, as empadas de perdiz de mero aproveito e os pastelões ou empadões de caça em muitas quintas durienses, a perdiz dita à moda do Douro e de escabeche, a galinha e galinhola encantadas

a bragançana galinhola afidalgada com uma molhada de tomilho de recheio, barrada com uma pasta de mel e pimenta preta moída, e a galinhola em martírio – receita atribuída à família de Ayres da Castanheira (Vidago, 1826-1905), pelo que me transmitiu a Mª João Lino – conseguida em “brasas pouco espertas”, sem pinga de azeite mas uma boa bica de manteiga barrosã, são das confecções galináceas que mais admiro

o magriço coelho bravo com arroz de carqueja em Penedono, o coelho do monte e o faisão à moda da tabuacense Adega da Tarraxa ou o coelho bravo à Monsenhor e o faisão com castanhas com que a Dona Ana Maria Baptista do Solar Bragançano arrebata pasmos e momentos de assombro, o coelho frito e a coelhada à moda da bruxa de Valpaços

são várias as receitas assacadas a esta famosa “bruxa”, nascida no século XIX e mais conhecida pelas suas qualidades gastronómicas que pelas feitiçarias. A sua arte de cozinhar espalhou-se rapidamente por todo o Trás-os-Montes. Realidade ou mito? Mito, certamente.

o caçapo roubado confeccionado no campo nos dias de caça, a lebre estufada e o arroz de lebre, as muitas lebradas de arranjo familiar

as lebradas que as cozinheiras refugiadas da guerra civil espanhola deram a conhecer às casas dos raianos nordestino-durienses que as acoitaram. É só perguntar aos antigos contrabandistas daquelas arrojadas e aflitivas trocas comerciais nocturnas! São as lebradas castelhanas que assumiram tradição para os domingos de vindima em casas mais enricadas como lebrada das vindimas. Nos termos lamecenses, os quinteiros avantajavam-se preferencialmente com uma coelhada – o coelho das vindimas – que, além de outras particularidades no preparo, como cozinhá-la em mosto de vinho tinto, levava um bom recheio de bagos de uvas brancas salpicados de pimenta preta

a simplicidade da perdiz em rojão dos mirandeses e assada à moda dos galegos, os pombos afogados no vinho e os borrachos da vindima, os tordos de aguardente ou assados de peito aberto na brasa, as costeletas de javali no pote e o javali de romaria no caldeiro, o pernil de raposa no espeto que os montesinos faziam como se tratasse de uma perna de cabrito… as narcejas

quando as havia e o caçador lhe botava o chumbo certeiro, esta ave bicuda e de voo meio atabalhoado era adobada de azeite à mistura com banha de reco, na ida ao forno, e temperada de aguardente e uma esmagada de bagas zimbreiras, a meio da cozedura

as paspalhaças em martírio, os impressionantes peitos de rola à moda do Morgado de Mateus ou as costeletas de veado que o académico Visconde de Vilarinho de S. Romão disse serem “à Jaime de Albuquerque” (…) das fresquitas merendeiras em guisado de qualquer caça apanhada no próprio dia às antigas fritadas dos passarinheiros vendidas porta a porta nos tempos da guerra […] E os tordos assinalam o perpetuar da apanha da azeitona! Talvez, mas não pelos seus apetites azeitoneiros! Para o agricultor são larápios, para o caçador, alvos de prazer e para os gastrónomos, conforto dionisíaco. Nas brasas, às vezes logo por cima delas, abertos ao meio, só com uma pitada de sal e regados na travessa com um molho queimoso, também as fritadas em azeite e o arroz deles num bom refogado, são o correntio culinário desta pequena ave migratória. Comeres de simplotes e de trabalheira escusada para quem não os queira depenar. Muita outra caça de penas –da rola ao pato bravo ou do tralhão à paspalha, de chumbo ou de armadilha – também faz o gosto ao improviso gastronómico e, por aqui, ainda abunda, arreigando-se desde sempre nos nossos hábitos alimentares. Apenas ficaram de fora aqueles passarecos que de tão pequenos que são não mereciam o trabalho do arranjo ou outros que ganharam algum misticismo e repúdio ao abate.

Este saber é comida de homem! (…) O mais importante é a caça dos restolhos.

As vagens e os cornipos dos rasteiros até se dispensam! 

Antigamente, a caldeirada à ribeireiro

receita sempre inacabada, era preparada num caldeiro – colocado na fogueira que se fazia numa poça à beira do rio Douro ou da ribeira da Vilariça – com a caça vil mais utilitária, os produtos das hortas dos barrais e a arte de cada ribeireiro […] Com as actuais condicionantes da caça e restrições ambientalistas, a perdiz e o coelho bravo são muitas vezes substituídos pelo frango e o coelho manso – o coelho gatorro! – ainda assim de paladar apurado que justificam a gratidão deste manjar campestre. Bem! O ideal é que nunca lhe falte uma boa charrela.

Depois de amanhar o que o caçador de serviço conseguir arranjar e as vagens tenras das chicharreiras, leve a cozer numa panela com bastante água e deixe cozer bem. Junte-lhe presunto às tiras e sal de acerto, uns nacos de chouriça gorda, malaguetas, ficando tudo a [re] cozer mais um pouco. Quando as carnes estiverem macias, desosse-as e desfie-as o melhor possível; na calda da cozedura deite metade de pão trigo e outra metade de pão centeio, previamente fatiado, e deixe apurar; volte a pôr as carnes já desfiadas, regue com azeite cru, mexa bem e rectifique os temperos. Se a disponibilidade hortaleira for de fartura, acrescente de pimentos e/ou tomates (…)

Oxalá esta meditação resulte num regresso ao imo dos segredos da caça, aos ecos da origem e ao benefício da mesa de outros tempos. Que os recitais sejam sempre melódicos!

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

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