Chouriça de baca mirandesa
fumeiro relegado que merece la perpetuidade

eipílogo
O texto, l pildracho ‒ em conclusão
(…) Fui essa lhembráncia que quije eiqui traier hoije, pus todos sabemos que l quemido ye un eilemiento eissencial de la nuossa cultura: cumo saber, cumo modo de star, cumo relaçon cul que stá alredror de nós, cumo eilemiento social de lhuita, partilha i purparaçon de l feturo, cumo algo que mos fai, tamien an sentido físico. Somos tamien aqueilho que quememos, ls purparos que le damos al que quememos, l modo cumo quememos, cun quien mos ajuntamos para quemer, ls sítios adonde quememos, l modo cumo guardamos aqueilho que bamos a quemer i l tiempo an que quememos aqueilho que guardamos. […] Chegou-se al fumeiro d’hoije apuis de muitos seclos de spréncia, que se fui bolbendo an saber cada beç mais acoquelhado, refinando sabores, ambentando çuças, temperando la dosa cierta de sal i de fumo, apartando l que fazie menos mal, stablecendo dies ciertos para quemer ciertas cousas, nua mistura de saber i de trabalho adonde éntran tamien santos i dies santos, ouraciones, lhunas buonas para matar i para quemer. Suidades de l tiempo antigo? Nada desso. Solo l cuidado de nun botar pa la rue l que stá cierto, quando stá cierto, i aqueilha curjidade sin cura que mos faç correr atrás la pregunta: quien somos i porque somos assi?» [in www.diariodetrasosmontes.com/cronica/l-pildracho]
Comer cediço!
A História e as tímidas estórias das tradições da “Chouriça de baca mirandesa”, também dos pildrachos, nembras, ou das costielhas de baca fumadas, perdem-se no tempo, provavelmente à data da romanização da península ou à época do séquito galês de Henrique de Borgonha de ajuda à reconquista do Reino da Galiza pelo rei Afonso VI de Leão (pelos séculos XI/XII), tal como tantos outros exemplares do nosso fumeiro
… alheiras, azedos, bocheiras, botelheiros, botelos, buchos, bulhos, chabianos, farinhotas, folianos, laronas, linguiças, melícias, mômas, morcelas, mouras, pigureiros, salpicões, sangueiras, tabafeias, tarimbolins, vilões (…)
estão associadas à acentuada ruralização dos costumes alimentares e à naturalidade dos sistemas agro-pecuários praticados no Planalto Mirandês, onde os agricultores-lavradores, sempre pequenos proprietários, ao contrário dos seus vizinhos do Vale do Douro Superior ou da Terra Fria Transmontana, desenvolviam métodos de exploração policulturais… e organizavam-se em regimes de produção extensivos, orientados prioritariamente para o auto-consumo e venda dos excedentes nos mercados locais. A comunidade judaica, nestas práticas mercantis, deu sempre o mote e uma excelente ajuda ao aforro familiar. Era bô comer, d’aprumado sustimento… foram várias as vezes que escutei esta expressiva saudade à memória.
Origem das palavras
São várias as publicações que atrelam a origem da palavra «chouriço» (a) a uma forma latina do vocábulo salsicium, que, na sua essência, significa ‘salgado’.
[A minha opinião]. Nem foneticamente a evolução etimológica da palavra nos leva a aceitar esta [precipitada] hipótese nem tão pouco semanticamente, já que os nossos enchidos – os nossos fumados que levam séculos de especialização e momentos diários de simples retoques – não vão à cura da salga mas sim ao fumo e ao ar seco, quente ou frio. Existem, no entanto, outras fontes e outros comentários que nos querem fazer querer que se trata de uma herança da «mestria» alimentar castelhana ou leonesa. Será? Vejamos. Em castelhano, o mais antigo testemunho existente para a palavra é de 1549 [quem o diz é o CORDE, Corpus Diacrónico del Español da Real Academia Española], por parte do latinista, helenista, também professor de grego em Salamanca, Hernán Núñez (de Toledo y Guzmán) [1475-1553], no seu imenso reportório paremiológico da tradição baixo-medieval e – sem surpresa – através da recolha de um provérbio português
Xaramago y choriço, meten a vella no cortiço
anotou ele que o português chamava ‘choriço’ à morcilla. E só aparece na literatura castelhana, pela primeira vez, e pelo que conheço, no tal século de ouro espanhol, com as obras do grande poeta, dramaturgo, Lope de Vega, e do escritor e político Francisco de Quevedo, já do século XVII. [Por exemplo: ‘en los sombreros llevan por toquillas cordones de chorizo, que es cimera de más pompa y sabor’ (Poema heroico de las necedades y locuras de Orlando el enamorado, 1628-1630)].
«… A falta de *sauraz em gótico, a autoctonia dos elementos de cultura material envolvidos, a apariçom tarda de chorizo em castelhano, todo aponta a origem galego-portuguesa e o empréstimo ao castelhano. Será suevo? Viria polo caminho de Santiago? (…)»

Quem também o escreveu in ‘Germanismos pouco estudados do galego-português’ ― excelente artigo que me deu a conhecer (em Janeiro de 2009) o empresário ourensiano José Posada González (daquela obra-prima que é ‘Posada Marron Glacé’) [www.adigal.org.ar/germanismos.pdf] ― foi o filólogo argentino Higino Martins Esteves de procedência materno-paterno de Santa Maria de Oia no Baixo-Miño, que, como ele diz, ‘leciona português da Galiza’. E em Portugal? Pela consulta ao Corpus do Português [Davies&Ferreira] sabe-se que a [nossa] palavra já estava registada desde a primeira metade do século XIII, na forma de souriço [souriç], numa cantiga de Dom Fernám Garcia Esgaravunha
‘E al faz ben, como diz seu marido:/faz bon souriç’ e lava ben transsido,/e deyta ben galinha choca assaz!’
mais tarde, três séculos depois, no ano de 1516, e antes do seu contemporâneo castelhano mencionar tal provérbio, é referida no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, tanto com /s/, como com /tſ/
(…) ‘ela era mal lauada toda posta no tousiço de diante mall quebrada na pousada foreada & no paço gram chouriço’; ‘E poys lesta cousa atiça nam seria cousa feca tres voltas de lingoyça ou souriça oo pescoço por cadea.’
(e) ainda no Pequeno Dicionário de Latim-Português [BNP-biblioteca nacional digital; purl.pt/14309; purl.pt/15192], organizado por temas e para uso escolar, do lamecense Jerónimo Cardoso, em 1562 (a edição de 1551 considera-se perdida).
A palavra chouriço (a), a ‘salsicha seca’ de outros
― em teimosa convicção, sem o mínimo de conhecimento acerca da arte das palavras, mas, com uma excelente ajuda da amiga reintegracionista, linguista galega, Maria do Carmo Henriquez Salido (professora catedrática emérita da Universidade de Vigo), e do historiador mirandelense Roger Fernando Teixeira Lopes ― é de origem portuguesa e procede da forma primitiva (medieval) souriço, formalmente um adjetivo derivado do germânico sauz – “seca”, por rotacismo /z/ ˃ /r/, [sour], um recurso conhecido para o idioma suevo (reino suevo da antiga Galécia que marca fronteira com o reino visigótico por terras sendinesas), em que a passagem de /s/ a /ſ/ e de /ſ/ a /tſ/ era frequente à época neste canto da península e, morfologicamente, o sufixo -iço (do latim -itium ou -icium).
Chouriça de baca
Para sentir e carregar com esta certeza de comer [infelizmente] relegado
basta meter conversa com os promotores e dirigentes da Associação de Criadores de Bovinos da Raça Mirandesa [organização corporativa criada em Setembro de 1989, actual gestora do Livro Genealógico da raça, sedeada no antigo Posto Zootécnico de Malhadas – Miranda do Douro] e da Cooperativa Agro-Pecuária Mirandesa, com os mirandeses mais atentos ao vivo sentimento de personalidade territorial, a exemplo de alguns dos atrás citados, que rapidamente nos remetem para hábitos tão de estima ancestral como este de enchouriçar a carne de vaca… ou aquele de acamar a massa e planear bolas doces de uso pascal – la bola doce mirandesa (que a seu tempo terá conversa de estímulo ao honrar das causas). Facilmente, porque apenas de memória bem presente, também nos localizam no tempo das ‘trocas comerciais nocturnas’ – o contrabando de outrora – da permuta mercantil de sabores e gastronómica de saberes
o fumeiro com a incorporação de carne bovina – das raças sayaguesa e morucha – numa abordagem simples, apenas de natural curiosidade, foram anotados em paleio de rotina por Brandilanes, Castro de Alcañices, Samir de los Caños, Fornillos de Aliste, por exemplo…

e da premência ao essencial da subsistência, da animosidade dos seus habitantes em relação a valores abstractos provenientes de além-fronteiras que não fossem os da vizinhança casamenteira, das rixas frequentes de lado a lado e das realidades indesligáveis no destino dos povos raianos até onde a memória dos seus alcança (…) Neste caso, em todos os testemunhos orais aqui [re] memoriados, através do histórico “aprendi a fazer de comer a ver a minha mãe”, é o mais exequível e leva-nos facilmente até início do século XIX.
A poesia, a conversa, das palavras viageiras a Trás-os-Montes e ao Alto Douro do escritor leonês Julio Llamazares dá-nos a sensação da redescoberta do nosso fado e das profecias de quem vive mais perto dos deuses…
O Tiu Ángelo Arribas e o seu irmão Manuel
ambos com treino suado no tráfego de café, do bacalhau e do que mais a clientela sugerisse ao negócio, ou quem aqueles que mais privaram com a infinidade de relatos do Tiu Ernesto Bartolo [Ernesto Martins Lhano (1915-2009)] que, além de gaiteiro e pastor de gados, amanhava-se bem com uma oficina de bicicletas e de outros pequenos arranjos que o faziam dar uns saltos ao outro lado do rio à cata de umas peçazitas, também a história da família Fernandes já com cinco gerações de tocadores de gaita-de-foles – de Domingos Gabriel Fernandes (1865) a Inês Fernandes Pereira – que o amigo Henrique Gaiteiro [Henrique de Jesus Fernandes] sabe e deveria contar aos sete ventos como já o fez para o “processo de construção, manutenção e informação da palheta, e do palhão, artefactos nobres que dão vida e beleza à gaita-de-foles”, as outras “contas que a minha mãe me contava” sacadas às mimórias de bidas de António Cangueiro, “as práticas de contrabando no Nordeste Transmontano” de Hermínio Augusto Bernardo integradas nas «VIII Jornadas Luso-Galaicas de Ciência e Desenvolvimento», respectiva prelecção e posterior debate, Outubro 1999, em Miranda do Douro, ou a carga histórica dos contares reportados às brigas, medos e valentias da estrada mourisco (via secundária de cronologia romana) nos transportes de Sendim até Constantim, à Candena e a Moveros, pelos relatos de quem apenas ouviu deste e daqueloutro (…) são repositórios forçosos das vivências sociais, económicas e alimentares desses tempos, que bem poderão ajudar a recontar e a escrever a história dos usos e costumes da alimentação no Planalto Mirandês [!] ― tal como foi feito pela etnomusicóloga austríaca Barbara Alge com a tradição das danças dos pauliteiros de Miranda [2002-2004].
As chouriças (chouriços) de vaca (mirandesa)
outros adeptos da cultura pecuária regional, ao longo destas conversas e em jeito especulativo, nomearam-nas de linguiças [lucanicae, luganega] ou salsichas [salsicius] mirandesas harmonizadas ao formato de ferradura ― o profético modelo por intervenção das superstições judaicas ou pelos temores populares das forças ocultas e «tão» sobrenaturais, coisas – ou causas – do fim da época medieval ou pelo início da era moderna
permitiam, nomeadamente, aos que possuíam bons ou maus bovinos de carga e trabalho, porque outros não haviam [a necessidade da vocação leiteira (regional) estava destinada às cabras ruças serranas], ou, desses, os animais mais velhos e os mais acidentados, o aproveitamento da sua carne quando terminavam a vida activa e não lhe queriam o destino da morte lazarenta e respectivo abandono fora dos povoados, tal como faziam a outros animais avelhentados (e não comestíveis!). Esta prática, além de particularidade nas rotinas alimentares da nordestina Terra Fria Transmontana, era um esteio para a garantia da subsistência das famílias.
Modos de saber fazer
Em Trallosmontes nos referidos séculos de forte influência judaica [XV/XVII]
estima-se que o consumo de carne de vaca, vitelos, bois em fim de função, principalmente das ditas vacas sem serventia para a labuta campesina nem para a procriação, era bem superior ao da maioria da população do reino, muito pela sua capacidade económica e pelas obrigações religiosas com os seus hábitos alimentares ― a quem estava vedado o consumo de carne de porco e de outras tidas como impuras. Uma vaca daquelas, velha e já agastada para os afazeres do campo, representava p’ra cima de trezentos quilos de boa chicha que deveriam ser conservados por um período mais ou menos longo ― pelo tempo que fosse possível; e a melhor forma de o fazer, numa época não tão longínqua como isso e em que não existiam sistemas de refrigeração e congelação, era tão simples! ― conservar as ‘peças de açougue’ por desidratação, depois de temperadas [o chacinar das carnes]. Os métodos usados seguiam a tradição dos saberes familiares e os processos tecnológicos conhecidos: a secagem ao sol como se fazia com os figos, ao fogo como no arranjo das castanhas piladas, também a partir da salga à maneira da chispalhada e dos presuntos, ou imersas na banha do reco. As outras partes, as menos nobres ou as mais nervosas, as muito secas e quedadas que nem uma tábua ressequida, e as que não fossem conservadas em chacina, destinavam-se ao fabrico de enchidos «com barbada – que é a chicha boa da barriga do cebado – outra carne do cochino e mais alguma gordura do reco para amaciar a secura» (…) A adoba – a tradicional e identitária “água d’alhos mirandesa” – era constituída por água bastante, à medida do tempero e dos amanhos a ajeitar, um cachico de vinho tinto daquelas cepas armadas em sombra de cabeça de salgueiro que botavam pingachos mais assossegados, sal grosso a gosto, alhos moídos não muitos, pimentão [aqui, só a partir do século XVIII/XIX é que se vulgariza na condimentação alimentar regional e pela mão da vizinhança castelhana], muito raramente salsa e folhas de louro que se retiravam na altura de enchimento. O tempo passado na adoba ia quase sempre de dois a quatro dias, em local frio e seco.

«(…). Enchem-se em tripa de vaca desidratada, ou em tripa de porco, em formato cilíndrico, cozidos numa das extremidades e atados com fio chouriceiro na outra, por onde se penduram no vareiro aleirado ao borralho. Têm um comprimento mais ou menos igual ao das chouriças de carne corriqueiras por toda a região e são sujeitos a uma fumagem rápida de lenha de carvalho, pelo menos dois dias. A cura processa-se durante uma a duas semanas, muito dependendo da temperatura ambiente (…). Podem ser consumidos frescos, logo após o enchimento, sem sofrer o processo de cura, grelhados em brasa quente ou cozidos a vapor; de meia cura, confeccionados grelhados na brasa; ou curados, destinando-se, essencialmente, ao consumo em cru e cozidos. No primeiro caso, a gordura e as carnes são picadas; em meia-cura e curados, os constituintes são cortados em pedaços de pequena dimensão e passam pelo processo de fumagem e cura.» [Inf. transmitida pela Associação de Criadores de Bovinos da Raça Mirandesa e Cooperativa Agro-Pecuária Mirandesa]
Actualmente, nestes anos de incôndita proliferação regional das intituladas ‘feiras de produtos regionais’, por todo o Planalto Mirandês, com excepção dos produtos provenientes da «cooperativa» ‘Unidade Industrial de Vimioso’, produtos já exportáveis, nomeadamente aquele que denominam por “chouriço mirandês”, julgo que só são produzidas chouriças de baca e nembras, muito raramente pildrachos e costielhas de baca fumadas (por curiosidade ou em desafios entre amigos), para auto-consumo, em duas ou três aldeias e por meia dúzia de famílias, talvez, talvez, não mais!, existindo, no entanto, a esta data, a vontade dos responsáveis associativos de fomentar a expansão, resultado de estudos prospectivos realizados a seu pedido. Nesse caso, tendo em conta a opinião de vários defensores deste saber
a área de produção possível a demarcar e de Identidade a proteger
porque intuitivo, seria o cruzamento das áreas geográficas da actual DOP «Carne Mirandesa» com a da DOP «Carne de Bísaro Transmontano» ― o território do Planalto Mirandês no seu todo, berço desta raça fusca e do costume há muito enraizado e diferenciador das “águas d’alho”, mais as terras frias transmontanas limítrofes de usos e saberes semelhantes.
Claro que o empenho e as tecnologias de hoje permitem avançar para outros produtos apetecíveis que não apenas estes de regresso às tradições. Claro! Mas, para já e neste término a mais uma das muitas e possíveis conversas à volta das causas e identidades gastronómicas, o que importa – a todos e agora – é o renascer e a valorização da chouriça de baca mirandesa.
Que assim seja, Amadeu!
Roma i Çamora nun se fazírun nua hora…
Dito mirandês
Parte I
O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico