Beldroegas

daninhas de bô sustimento

Prudência! Ao utilizar ervas bravias à mesa — sejam elas para gasto alimentício, apenas como aromáticas de saladas, condimentares disto ou daquilo — como medicinais ou mezinheiras, confirme que colhe a planta correcta, certifique-se que esteja sã e tenha crescido em boa ambiência. Ou seja: evite apanhá-las próximo a esgotos, águas há muito estagnadas, lixos e entulhos, focos poluentes, junto a cultivos com aplicação de agroquímicos, em locais de passagem ou de pastoreio animal. Evite recolhê-las com notórios sinais de ataques por insectos ou fungos (…) No mundo biológico todo pormenor é importante. Atenção! Se tiver dificuldade em identificar uma espécie, o melhor é contactar um técnico especialista ou – simplesmente – abdicar da sua recolecção.

Adeptas incondicionais das hortas e campos de cultivo
(até espevitam dos interstícios das calçadas) não são utilizadas comummente nas nossas cozinhas – nem de crença, nem em sonhos! Preconceitos actuais? Contudo, em alguns meios rurais deste país, nomeadamente do Vale do Douro Superior e Alentejo Interior, ainda são bem conhecidas e usadas em sopas e saladas cruas, sempre como ervas bravias e como boas daninhas. Sempre como alimento gratuito e francamente apetecível. Como planta cultivada para fins comerciais, na Europa apenas ocorre em pequeníssima escala no Centro e Nordeste da França, Bélgica e Holanda. [Pratica-se, com algum significado económico, no Sudão, Turquia, México e mais recentemente nos Estados Unidos da América] De conversa e aos olhos dos jardineiros urbanos e de muitos dos nossos agricultores, a beldroega é vista apenas como uma infestante deveras prejudicial e inútil

como tal assim tem sido estudada
visão esta que se alterou nos últimos anos, em parte devido ao reconhecimento científico como convincente fonte de ácidos gordos ómega-3. Como planta de uso popular, além de uma bondosa excepção de colocar as suas folhas debaixo da língua para acalmar a sede nos períodos do varejo das amendoeiras e das lavagens dos olhos inflamados com a água da sua cozedura na época das ceifas ou dos aborrecimentos de ser uma anafrodisíaca em período de festas, não lhe conheço outros costumes nestas tradições do reino dos remédios naturais e dos elixires sobrenaturais. No entanto, na imensa bibliografia disponível, além dos dotes alelopáticos, referem-lhe outras (e tantas) propriedades terapêuticas: diurética, laxativa, vermífuga e emenagoga [apenas as sementes], sudorífera, colerética, depurativa, emoliente, vulnerária, analgésica, anti-inflamatória (…) e relaxante muscular. Como erva de simbolismo nutracêutico é a tal fonte de ‘ácidos gordos essenciais’ ómega 3 — universalmente reconhecidos pela sua eficácia cardiovascular — sendo a melhor delas comparativamente com a de qualquer outra de plantas terrestres.

Também é rica em proteínas, vitaminas A [uma das mais ricas entre vegetais de folhas verdes], C [ao longo dos séculos foi muito utilizada na cura do escorbuto] e E, de valiosos minerais [cálcio, fósforo, ferro, magnésio, sódio e potássio…], anti-oxidantes, flavonoides (…) ácidos fenólicos e outros ácidos gordos.

Enfim, desde que se manifestou o seu uso
desde que se conhecem registos escritos, em Portugal, foi usada como depurativa do sangue, para aumentar o apetite alimentar, tratar vómitos, diarreias e disenterias irritantes, principalmente no domínio infantil, inflamações intestinais, mamárias, «escarros sangrentos», cólicas renais, queimaduras e úlceras (…) na prevenção das hemorroidas. Como emplastro, aplicada sobre feridas superficiais, esta mucilaginosa servia para favorecer as cicatrizações e acalmar hematomas nos rodopios das ceifas [Alentejo], aliviar a comichão das picadas de insectos [como seria feito na monda do arroz nos campos de Montemor-o-Velho] e era uma excelente aliada contra a acne [ainda o será em meios rurais algarvios?], dadas as grandes quantidades de ácido salicílico. É uma planta refrescante (…) é uma erva muito abastada. Apesar de todas as qualidades reconhecidas não convém abusar dela na alimentação diária, enquanto não se desenvolverem práticas culturais que minimizem a concentração de ácido oxálico nas partes comestíveis.

As beldroegas contêm quantidades significativas de ácido oxálico, um composto que poderá ser maléfico para a saúde humana [tal como nitratos e saponinas], uma substância natural que ocorre em variados vegetais – dos banais espinafres (o ácido oxálico é anti-nutriente em relação ao ferro), do ruibarbo (durante a 1ª Guerra Mundial, este vegetal causou a morte de algumas pessoas que se alimentavam abusivamente à base das suas folhas), das vulgares acelgas às folhas de beterraba (…) Quando ingerido em excesso, este controverso ácido impede a absorção de alguns minerais, como é o caso do cálcio, [promovendo o crescimento de pedras dolorosas nos rins e na bexiga], podendo mesmo ser letal. Aliás, todos os vegetais que consumimos têm algum elemento anti-nutricional, razão pela qual só temos a ganhar se qualquer que seja a Dieta for diversificada.

Na sua forma espontânea, a Portulaca oleracea L.
a dita beldroega, cresce em qualquer recôndito lugarejo, preferencialmente em solos agricultados; encontra-se em ambientes urbanizados, medrando ousadamente entre pedras da calçada e na generalidade dos locais degradados pela acção da natureza. Possui, inclusive, a capacidade de desenvolver-se em solos mal drenados, áridos… ou em acrescida salinização. É uma planta essencialmente ruderal e indicadora de solos ricos em azoto. Falando de solos e de afeições, mesmo sendo uma planta desenvolta e de performances básicas, prefere, em síntese, terrenos equilibrados, nutridos e com razoável disponibilidade de água. Ou seja: o ideal — a ter em conta quando o objectivo for o seu cultivo — são as terras adequadamente drenadas, leves, ricas em matéria orgânica e com pH de neutro a levemente ácido. No que diz respeito às condições climáticas, não se dá com temperaturas muito baixas nem com geadas sucessivas e carece de iluminação solar directa, crescendo bem na faixa que vai de 15 a 35°C, apresentando forte resistência à secura não muito prolongada, o que muito se deve à sua composição em polissacarídeos […] O seu sabor é acidulado, ligeiramente salgado, às vezes ríspido e suavemente apimentado, mas pode variar consoante a ambiência de cultivo, as circunstâncias de crescimento e a hora em que a ramagem é apanhada. Sabe-se, por exemplo, que em condições de baixa disponibilidade de água e/ou altas temperaturas, em pleno estio de catar o sítio ideal para a merecida sesta, a beldroega poderá mudar as suas vias metabólicas normais para o metabolismo ácido das crassuláceas – [que] consiste basicamente em absorver o dióxido de carbono durante a noite e armazená-lo como ácido málico até à incidência da luz solar durante o dia para ser metabolizado em glicose. Desta forma, plantas a crescer nestas situações tão madrastas apresentam sabores mais ásperos se colhidas no início da manhã e menos ácidos se colhidas já pelo fim da tarde. Ou seja: no saber popular, as beldroegas-de-comer só se devem apanhar na volta da rega da tardinha. É esta, tecnicamente, também a altura ideal da sua colheita.

Embora seja uma das poucas plantas de tripla função
– alimentar [humanos e animais domésticos], medicinal e [até] ornamental — e mereça ser mais espiolhada em todas as suas potenciais capacidades, caiu em desuso em muitos lugares onde era de consumo mais regular. Profundamente enraizada nos hábitos alimentares do [meu] Vale do Douro Superior, também aqui ameaça ruir o seu uso e ficar à guarda numa qualquer arca de recordações, tal como já aconteceu com as urtigas, malvas, tanchagens, labrestos, os beldros, as pardas (…) Algumas dessas memórias

Uma sopa de beldroegas

Tão simples! Cozem-se as cachas de duas a três batatas, de junto com a cebola cortada às rodelas ou em quartos, o chouriço de carne partido aos pedacinhos e um naco de toucinho não muito gordo. Depois tira-se o que é de tirar e mói-se o que for de moer, bastando esmagar com um garfo. Acrescentam-se uns bagos de arroz, mais um pouco de água aquentada se for caso disso, e sal de acerto. No fim colocam-se as ervas já bem enxambradas, dá-se mais uma fervura, ajeitam-se com um raminho de hortelã e um borrifo de azeite em tempero de apronto.

Salada de beldroegas

Depois daquela sopa (talvez seja um caldo porque leva de gosto um chichado do porco) — com o chouriço e o toucinho partilhados, um cadorno de pão para cada e o remate do cacharro de vinho dividido consoante a masculinidade da mesa — que muitas vezes era prato único nos dias de apertos, também de amiúdo servia para acompanhar as sobras de um qualquer assado de forno, lá vinha a salada de batata e beldroegas. Ainda é mais simples! Sente-se melhor o gosto das ervas! […] Corto as batatas descascadas em tacos pequenos e boto a cozê-las em água já temperada de sal e – depois de cozidas – deixo-as arrefecer. Entretanto, arranjo as beldroegas – só as folhas e alguns dos raminhos mais tenros. Assim que estiverem lavadas e escorridas arrumam-se numa terrina com as batatas, atum [de lata] esfarelado por cima delas e azeitonas se ainda as houver. No fim tempero com azeite de aparto, umas pitadas de sal e vinagre das bastardas.

Outra salada de beldroegas

Após apartar as folhas das ervas mais avantajadas, espontando-as dos brotos mais tenrinhos, [depois] de bem lavadas e escorridas, coloque-as numa terrina saladeira juntamente com o tomate coração-de-boi cortado em cubos pequenos, cebola picada grosseiramente e esfarelado miudinho de pão de atraso para sossegar a possível azedia que elas ainda deitem à primeira garfada; [a seguir] tempere de azeite, que vai bem com o gordo das folhas, que lhe amaina a vinagreira, não muito sal porque este atrapalha os temperos todos, colorau picante ao de leve e folhas de orégãos secos de enganar a saleira, salsa esfarrapada e vinagre de vinho tinto para compor os desequilíbrios da azeitada […] Por norma era uma salada que enriquecia os quartos de frango frito, às vezes dava apoio a lascas de bacalhau desfiado ou acompanhava com umas tiras de entremeada na brasa, mas, em dias de Julho/Agosto completavam bogueiras arranjadas nas frigideiras desviadas da fritura dos galináceos… e vinhos refrescados em bilhas no baixo da casa. Abençoadas daninhas que iludem tanta vinagreira!

Outra sopa de beldroegas

Ajeitada desta maneira. Ponha à mão um molho de beldroegas das mais empinadas, daquelas que atrapalham a rega dos ceboleiros, que são, sem dúvida, as melhores, retire-lhe os caules já ligeiramente enrijados e lave tudo muito bem – em água corrente e num banho de água avinagrada para empandeirar a bicharada. Agora, num tacho sopeiro coloque azeite suficiente, dois a três dentes de alho esmagados, deixe estrugir ligeiramente e espalhe um pouco de colorau doce por cima. Acerte a quantidade de água necessária e junte-lhe salsa esfarrapada a grosso, sal a gosto e sem fazer derrapar a língua, as beldroegas bem escorridas, a malagueta de rogar praguejados, uma batata pequena por pessoa cortada aos quadradinhos, e coza em lume brando. Quando estiver quase acabada, abra os ovos e adicione-os para escalfar.

Um caldo de beldroegas

que dizem ser à moda dos [nossos] antigos, em aproveito de pão velho, será mais ou menos assim. Num tacho leve o azeite ao lume com duas cebolas pequenas cortadas às rodelas e quatro a seis dentes de alho picados. Assim que a cebola quebrar, primeiro junte-lhe um cibo de gordo e o gosto de uma tira de presunto (a retirar no fim da cozedura), a seguir acrescente-lhe o despontado e as folhas das beldroegas bem lavadas e depois a água suficiente para ajeitar o caldo … e um ramo de salsa esfarrapada. Misture duas a três batatas médias partidas em cubos pequenos, como se faz para as massadas do rancho, tempere de sal, pimenta preta e colorau doce e/ou picante. Fica de fervura e quando estiver quase-quase pronto, a ver pela cozedura das batatas, adicione – em fio – três a quatro ovos previamente batidos. Deixe cozer mais um tempinho, e a findar, além de ajustar os temperos, mergulhe um ramo de hortelã e retire-o para verter o caldo numa terrina sobre o pão preto cortado em fatias finas. Dá, à vontade, para uma boa mesa.

Migas de beldroegas

Escalde as folhas das ditas e de seguida passe-as várias vezes por água fria. Escorra-as bem ou seque-as com um pano de cozinha. Num tacho faça um estrugido de azeite e alho esmagado até este saltear. Junte-lhe as beldroegas, [re] mexendo, caldeando-as com tantinho de azeite se necessário. À parte ferva a água necessária, temperada de sal, onde se escalfam os ovos de acompanhar as migas, para depois regar as fatias de pão cortadas em fatias finas e a fritura das folhas das beldroegas colocadas no prato sopeiro ou numa tigela. (Às vezes, a água do amolecimento do pão – de preferência ou de esperança – era a de cozer as postas de bacalhau ou feita a partir de uma tomatada.)

Arroz de beldroegas

Comprovei tão eufórica arrozada de acompanhamento a uma salada de fios de bacalhau com molho de azeite que trazia de ajuda umas malaguetas que faziam dos calores do inferno uma abençoada satisfação. Também não faltou a fritura das bogas daquela aguardada madrugada, nem os vinhos do Comparado, nem a afamada bagaceira que já levava mais de dúzia e meia de anos num casco de Porto, nem os gemidos do fadista […] Numa arrozeira coloca-se o azeite de fundo e dois a três dentes de alho bem esmagados. Deixa-se estrugir em lume pouco atiçado. A seco, junta-se o carolino (diz quem sabe), mais ou menos um quarto de quilo, e fica em fritura cerca de dois a três minutos, não mais, mexendo sempre. Adiciona-se água a ferver, entre o dobro e o triplo do arroz, as folhas de um manhuço de beldroegas e os talos tenros picadinhos, apenas sal ou acompanhado com cibinhos de presunto gordo, pimenta-preta moída e o preparo de açafroa para lhe dar um pouco de cor, e envolve-se tudo muito bem. Depois de tapada a panela fica a cozer cerca de dez minutos em lume brando. Por fim, acrescentam-se uns raminhos de salsa, mexe-se, fica de repouso não mais de cinco minutos, e está pronto – aí – para uma meia dúzia de pessoas.

Olhando novamente para a Portulaca oleracea L.
a beldroega, erva bravia de reconhecidas tradições. Dependendo do ponto de vista, tanto podem ser apreciadas até ao exagero como simplesmente detestadas. Porém, apesar de incómodas infestantes em culturas hortícolas, são ervas absolutamente extraordinárias, possuidoras de inúmeras propriedades medicinais e nutritivas relevantes. O que temos é uma regalada planta de baixas calorias que contém quantidades apreciáveis de alguns componentes de excelência e que é reivindicada como dotada de vários benefícios nutricionais e terapêuticos, daí o seu interesse pelos agentes do mercado de alimentos funcionais. Ressurgem na gastronomia contemporânea — ávida de novas texturas e da saudade dos sabores de arte rural — com o merecido rótulo de alimento saudável e de sabor agradável. Oxalá que assim seja!

Burro é quem não se regala a saboreá-la…
Ditado popular

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

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