Carlos Pereira

Diretor do LusoJornal

© Descendências/António Borga

Nome incontornável quando se fala na relação entre jornalismo, identidade e presença portuguesa em França. Fundador e diretor do LusoJornal, é hoje uma das vozes mais comprometidas com a preservação da memória e com a afirmação contemporânea da comunidade luso-francesa. Com um percurso marcado por décadas de envolvimento cívico, associativo e mediático, Carlos Pereira acaba de lançar a série documental “O extraordinário percurso da comunidade portuguesa em França”, exibida na RTPi. Um projeto ambicioso que percorre décadas de história, dá voz aos protagonistas anónimos e visíveis da emigração portuguesa e propõe, mais do que um registo factual, uma homenagem profunda a um coletivo tantas vezes invisibilizado. Nesta grande entrevista, falamos com o jornalista, o cidadão e o narrador que se recusa a deixar cair no esquecimento o que é, afinal, uma das páginas mais notáveis da história portuguesa recente.

© Descendências/António Borga

Há uma particularidade no seu percurso que salta à vista desde o primeiro contacto: é diretor de um jornal, profundamente envolvido na informação e nas causas da comunidade portuguesa em França, mas não é jornalista de formação. Pode contar-nos como se deu essa viragem para o jornalismo e o que o levou a investir tanto nesta missão de dar voz à comunidade luso-francesa?

Na verdade, não há qualquer viragem. Eu licenciei-me em física, mas desde muito novo que me apaixonei pela comunicação. Com 16 ou 17 anos, criei um jornal na minha aldeia, em Trás-os-Montes, que escrevia com uma velha máquina de escrever do meu pai, recortava, colava, depois fotocopiava e distribuía gratuitamente pela aldeia. Se virmos bem, estava ali o embrião do LusoJornal! Tinha informação local e distribuição gratuita.
Quando cheguei a França, descobri o universo das rádios portuguesas (na altura havia três rádios portuguesas na região de Paris) e uns anos mais tarde, quando fazia, com um grupo de amigos, o magazine “O Atrevido”, numa associação portuguesa, fomos convidados para fazer programas de rádio. Durante alguns anos fiz programas na rádio Portugal FM.
Depois de ter criado o LusoJornal, achei que o projeto podia estar relacionado com rádio e com televisão. Comecei a trabalhar para a RTP há 20 anos, num Telejornal da RTP Internacional, chamado RTPi Notícias. Depois trabalhei para os programas Europa Contacto e França Contacto e atualmente para a Hora dos Portugueses.
Pelo meio fiz várias ações de formação, mais pontuais, duas ou três em Portugal e as outras em França. E continuo a interessar-me muito por comunicação e a ler muito sobre comunicação.

Ao longo dos anos, tornou-se uma das vozes mais atentas e consistentes na paisagem da lusofonia em França. O seu envolvimento com a comunidade portuguesa em França vai muito além da informação: nota-se uma dedicação que parece misturar cidadania, afeto e consciência histórica. Acha que essa ligação é fruto do seu próprio percurso migrante ou de uma inquietação mais ampla com o modo como Portugal se relaciona com os seus emigrantes?

Quando eu cheguei a França, em 1984, não conhecia quase nada das Comunidades portuguesas radicadas no estrangeiro. Tinha os mesmos preconceitos que ainda hoje os Portugueses que moram em Portugal, têm, de uma maneira geral.
Eu trouxe de Portugal uma experiência de cidadania interventiva, precisamente na aldeia do concelho de Murça, onde passei a minha juventude. Não é de estranhar que pouco tempo depois de ter chegado a Paris já estava a coordenar um grupo de teatro, assumi funções de Tesoureiro e de Vice-Presidente de uma associação, coordenei o tal magazine “O Atrevido” e passei a fazer rádio, ciclos de conferências, eu sei lá…
Quando acabei o meu curso, a vida fez com que integrei a Coordenação das Comunidades Portuguesas de França (CCPF), uma federação de associações portuguesas. Aprendi muito nesta associação. Foi uma excelente escola de formação para mim e nunca cessarei de reconhecer o papel daqueles que me rodearam naquela altura. Fiquei 10 anos nesta estrutura, onde entrei como Animador sociocultural e depois passei a ser Diretor de projetos. O Festival de teatro português em França ficará para mim, como o projeto mais ambicioso que organizei na CCPF e aquele que teve mais visibilidade na Comunidade.
Conheci a França toda com a CCPF e criei amigos com quem ainda hoje estou em contacto. E foi com a CCPF que fui candidato, pela primeira vez, ao Conselho das Comunidades Portuguesas (CCP). Nesta estrutura voltei a ser candidato uma segunda vez, e acabei por ser eleito pelos meus colegas Vice-Presidente e depois Presidente do Conselho Permanente. Foi uma grande honra e foi, mais uma vez, uma grande escola da democracia.
Profissionalmente ainda passei uns anos pela Marconi France, do grupo Portugal Telecom, onde fui Diretor de Marketing e Vendas e mais tarde dei algumas aulas enquanto professor convidado na Sorbonne Nouvelle e em algumas outras universidades.
Isto tudo para dizer que a minha implicação cívica está inteiramente relacionada com o meu percurso pessoal, mas também me enervo muito pela forma como Portugal trata os seus emigrantes.

© Descendências/António Borga
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Costuma dizer-se que os órgãos de comunicação social das comunidades portuguesas são os verdadeiros arquivos da memória coletiva dos emigrantes. O LusoJornal tem sido, sem dúvida, um desses arquivos, que se tem distinguido como um projeto editorial consistente, digital e resiliente, com uma atenção permanente ao quotidiano da comunidade portuguesa em França. Como tem sido gerir este projeto e como lida com essa responsabilidade histórica e identitária?

Na verdade, o LusoJornal é um “ovo de Colombo”. Eu não inventei nada, apenas sabia que era possível fazer jornalismo nas Comunidades. Não é a invenção do século, é uma evidência. Só que os jornais que existiram na época, e houve muitos, nenhum era semanário, eram mensais. Ora, com um jornal mensal não se dá notícia. No melhor dos casos, comenta-se notícia.
Ao cobrir, durante 20 anos, os eventos da Comunidade portuguesa de França, sinceramente, não vejo mais nenhum sítio que conte a história contemporânea desta Comunidade a não ser no LusoJornal.
Para além de fazermos serviço público a criar laços na Comunidade, também preservamos esta história.
Devo confessar que isto não interessa minimamente os sucessivos Governos portugueses. Ainda recentemente foram divulgados os apoios do Governo para os órgãos de comunicação social portugueses no estrangeiro e apenas 3 órgãos foram apoiados (um deles é o LusoJornal). Mas se lermos os projetos apoiados, Portugal apoia um jornal para fazer uma Gala ou para fazer um Congresso das associações. Sem papas na língua, isto é apoiar os órgãos de comunicação social?

Apesar de serem uma parte fundamental para as comunidades portuguesas, muitos órgãos de comunicação social ligados à emigração acabaram por desaparecer, sobretudo os que tinham base impressa, fruto da escassez de recursos e da crescente competição por atenção nas redes sociais. Em contrapartida, o LusoJornal soube adaptar-se ao digital. Como vê o futuro do jornalismo luso-francês: será exclusivamente online ou ainda há espaço para outras linguagens — rádio, vídeo, até talvez o regresso à imprensa em papel?

Quando o LusoJornal nasceu, toda a gente nos dizia que íamos acabar depressa. Diziam-nos que não havia notícias suficientes para alimentar um semanário, diziam-nos que um jornal gratuito não podia ter qualidade, diziam-nos que os Portugueses não liam e que não havia clientes para comprar publicidade.
Eu respondia que uma Comunidade com um milhão e meio de Portugueses tinha de ter notícia (e agora, que somos um diário, continuo a achá-lo). Eu dizia que nós não pagamos as rádios que ouvimos no carro, mas não pomos em causa a qualidade dos seus jornalistas, por que raio teria de ser diferente na imprensa escrita? Eu recusava-me a acreditar que os Portugueses eram mais “totós” do que os outros e não liam porque não tinham jornais para ler. Onde talvez tenha de lhes dar razão, é sobre a publicidade. A Comunidade portuguesa não compra publicidade para ajudar um órgão de comunicação comunitário e, apesar das tais mais de 50 mil empresas portuguesas de França, aquelas que compram publicidade quase que se contam pelos dedos de uma mão.
Para responder à pergunta: a Comunidade portuguesa de França não é diferente do resto da população e por isso, nos nossos tempos, os hábitos de leitura da informação são essencialmente digitais. Não há volta a dar-lhe. E eu percebi isso logo desde a criação do LusoJornal porque desde o início, tínhamos o jornal disponível online.
O que não impede que haja suportes impressos, mas não é para dar informação, é para complementar, desenvolver, explicar… Acredito que os magazines ainda têm alguns anos pela frente!
Pessoalmente, acredito que em França, as rádios Portuguesas têm urgentemente de desenvolver um trabalho de digitalização se quiserem ser rádios por muito mais tempo. Fazer rádio hoje como se fazia há 30 anos atrás, é um risco bastante grande, mas esta é apenas a minha opinião!

O título da série que está a lançar — “O extraordinário percurso da comunidade portuguesa em França” — propõe desde logo uma leitura afirmativa e quase épica de um fenómeno migratório complexo e multifacetado. Que urgência, responsabilidade ou inquietação o levou a querer contar esta história agora, neste tempo, e com este enfoque tão marcado na valorização do legado português em solo francês?

Como eu disse, eu admiro muito a Comunidade portuguesa de França. É um exemplo único. A maior parte dos Portugueses que veio para França nos anos 60, eram analfabetos, e no melhor dos casos, eram iletrados. Chegaram aqui sem conhecer a língua nem o país. A maior parte veio viver para bairros de lata.
Hoje, estou a mostrar que os filhos destes, são Deputados, Presidentes de Câmara, empresários, dirigentes associativos, estão no meio cultural, desportivo… se isto não é um percurso extraordinário, então o que é?
Chegou o momento de contar esta história. Mas não há livros nem documentários que a contem, isto tem de ser feito aos poucos, com vários livros, escritos por várias pessoas, com filmes, documentários ou de ficção, realizados por vários realizadores.
Eu dei, a minha empresa de produção audiovisual, a Aniki Media Productions, este contributo com esta série de 8 documentários de 52 minutos cada um, para a RTP, mas espero que muitos mais documentários possam ser feitos, não apenas por mim, mas por muitos mais realizadores, para outros canais de televisão.

A série que apresenta assume um duplo desafio: por um lado, registar e narrar uma história coletiva que está ainda em movimento, e por outro, contribuir para a construção de uma identidade partilhada entre portugueses e lusodescendentes num território que nem sempre reconhece essa presença com a dignidade que merece. Como é que equilibrou o rigor histórico com a emoção do testemunho pessoal e a necessidade de criar uma narrativa que pudesse também ser pedagógica para as gerações mais jovens?

Eu conto histórias, e, para isso, escolho personagens, escolho pessoas que, com os seus testemunhos, contam histórias. Com estas histórias individuais, eu estou a contar, claro, elementos de uma história coletiva. Mas eu não sou historiador, nem esta série tem esta pretensão.
Até no episódio sobre a contribuição dos Judeus portugueses do século 16 para o desenvolvimento da França. Eu tenho de dar elementos históricos, claro – e para isso recorro a historiadores – mas interessa-me muito mostrar o que temos hoje, o que nos fica hoje dessa história. O mesmo acontece com a participação dos Portugueses na Resistência francesa durante a II Guerra mundial. Eu sempre ouvi dizer que Portugal foi um país neutro e não há nada mais a dizer. Ora eu entrevistei familiares de Portugueses que foram fuzilados, entrevistei familiares de Portugueses que foram deportados para campos de trabalho e por ali morreram… Eu não conhecia esta história ainda há meia dúzia de anos. Mas temos de a contar. Mas, eu não diria que a França não reconhece “com a dignidade que merece” esta presença portuguesa em França. Não digo porque foi a França que deu tudo a esta gente. A mim também. Eu nunca me posso esquecer que vim para França porque não consegui ingressar numa universidade portuguesa e ingressei numa universidade francesa. E, da mesma forma, todos os testemunhos que eu tenho ouvido, são precisamente de um reconhecimento enorme à França por ter dado aos Portugueses aquilo que Portugal não deu. Sejamos claros, foi assim. Foi a França que permitiu que o percurso dos Portugueses fosse, efetivamente, extraordinário.
Portugal é que ainda não percebeu o quão extraordinário foi este percurso e não percebeu que, desconhecendo e ignorando as Comunidades, está a perder muito.

© Descendências/António Borga
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Durante anos, o discurso oficial em Portugal retratava os emigrantes com paternalismo ou em tom de saudade. Mais recentemente, passou a vê-los como investidores, empreendedores ou fontes de remessas. Acha que esta série pode ajudar a recentrar o olhar sobre os portugueses em França, não apenas como recurso económico, mas como comunidade cultural, histórica e política com identidade própria?

Quem me dera que fosse assim. Mas não acredito nos meus poderes de super-homem. Esta série é apenas um contributo para que as coisas mudem, mas não chega, tem de haver mais séries, em mais canais.
Eu também não gosto de discursos paternalistas. E se há coisas que eu não suporto mesmo, é de ver gente a dizer “os nossos emigrantes”.
Permita-me também uma nota particular: se é verdade que o percurso da Comunidade portuguesa de França é extraordinário, também é verdade que nem todos os casos são de sucesso. Numa comunidade com cerca de 1,5 milhões de pessoas, é natural que haja gente que tivesse encontrado problemas de integração, de socialização, problemas económicos por vezes graves. Nos últimos tempos têm surgido, aliás, associações de solidariedade que têm vindo ao encontro destas pessoas para as ajudar.

Falar da comunidade portuguesa em França é também falar de pertenças múltiplas, de identidades compostas, de afetos partilhados entre países. Sente que esta série contribui para reforçar essa ideia de que não é preciso escolher entre Portugal e França, entre passado e presente, entre memória e futuro?

Mostro claramente que é possível ser-se francês e português ao mesmo tempo, que é possível amar um e o outro país, que é possível fazer política em Portugal e em França, ter negócios em Portugal e em França, ser músico, pintor, desportista, em Portugal e em França.
Se virmos bem as coisas, isto é a continuação da nossa história. Os Portugueses quando vieram para cá, saltaram fronteiras (por vezes pondo a sua própria vida em perigo) e têm passado vidas inteiras neste vai-vem incessante entre os dois países.
Esta dupla identidade cultural não tem sido, de todo, um problema. Pelo contrário, tem sido motivo de orgulho.

Há algo de profundamente simbólico no facto de ser um jornalista sediado em França — e profundamente enraizado na comunidade luso-francesa — a assumir, em nome próprio, a tarefa de narrar com rigor e profundidade a história da maior comunidade portuguesa fora de Portugal. Como vê o papel do jornalismo de proximidade, exercido a partir do interior das próprias comunidades emigrantes, na reconstrução da memória coletiva e na valorização das trajetórias migrantes? Sente que há um dever acrescido quando se fala “desde dentro” da comunidade?

Claro. Mas isto não se passa apenas nas Comunidades. Um jornalista de Vila Real falará mais rigorosamente de Vila Real do que um jornalista de Lisboa que vá fazer uma entrevista a Vila Real. Claro que o rigor jornalístico não deve ser posto em causa nem num nem no outro caso, mas quem está aqui sabe muito melhor por onde pegar numa notícia.
Quantas vezes há jornais em Portugal que enviam os seus jornalistas para reportagens em França e depois, quando cá chegam, telefonam-nos a pedir dicas e pistas. Seria bem mais fácil recorrer a jornalistas de cá, não é? Fica aqui esta dica!

Como imagina a continuidade deste projeto? A série pode dar origem a uma segunda temporada, um livro, uma exposição, um acervo digital? Está nos seus planos expandir este trabalho documental a outras geografias com forte presença portuguesa?

A série já tem dado, e ainda há de dar mais, artigos no LusoJornal. Tenho entrevistas de meia hora ou até mais, e no documentário utilizo apenas alguns 5 ou 6 minutos. Por isso tenho muito material que estamos a utilizar, pouco a pouco, no LusoJornal. Estávamos à espera que a série começasse a sair, para publicar algumas dessas entrevistas.
Eu considero que há matéria para mais séries, claro. Mas sei que são projetos caros. Vamos ver se conseguimos engenho e arte para encontrar formas de os cofinanciar.
Um livro? Porque não? Uma série para rádio? Porque não? Eu não considero ser a pessoa mais certa para fazer séries como esta noutros quadrantes geográficos, mas noutros países da Europa, sim. Porque não? Sempre gostei de novos desafios.

Se tivesse de condensar a experiência da comunidade portuguesa em França numa única palavra — ou imagem — que surgisse ao longo da série, qual escolheria? E porquê?

A palavra “Extraordinária” resume tudo. Mas o episódio sobre os judeus enriqueceu-me muito culturalmente. Quando cheguei a uma aldeia, a alguns quilómetros de Bayonne, no sul da França, para entrevistar o senhor Léon, ele saiu de casa, veio receber-me ao portão e perguntou-me se podia abraçar “um irmão português”. Logo ali, emocionei-me. Depois perguntei-lhe se ele se sentia português. Respondeu-me afirmativamente e sem hesitação: -Eu sou português! Afinal a família dele veio para França, fugidos da Inquisição portuguesa, há 9 gerações! E ele nunca tinha ido a Portugal. Mostrou-me a Tora que a família trouxe, fabricada em Lisboa no século 15.
Nove gerações depois, este senhor continua a dizer que é português. Passei uma tarde inteira com este irmão português e foi um dos momentos mais marcantes desta série, que infelizmente não se traduz por imagens, mas foi um momento que vivi com grande intensidade.

Neste projeto, sente que está a fechar um ciclo pessoal e profissional, ou pelo contrário, a abrir caminho para uma nova etapa da sua intervenção cultural e jornalística no espaço luso-francês?

Eu estou sempre a abrir novos ciclos profissionais… (risos).

Vivemos um tempo de mudanças na emigração portuguesa: há menos permanência e mais circularidade, menos operariado e mais quadros qualificados. Acha que a comunidade portuguesa em França vai manter o seu peso histórico e simbólico nos próximos 20 anos, ou vai diluir-se num novo tipo de mobilidade mais volátil?

Permita-me que discorde. Sim, há mais gente a vir, ficar por cá uns anos e depois regressar ou ir para outros países. Mas o número de Portugueses que mora aqui é enorme – cerca de 1,5 milhões – estes que chegam agora são uma gota de água neste oceano.
Eu também ouço falar muito de uma emigração de jovens qualificados que saem de Portugal. É pena que não ouço falar nos jovens lusodescendentes qualificados que vivem nas Comunidades.
Visto de Portugal, dá a impressão de que os jovens qualificados vêm para França, onde está uma Comunidade de operários. Desengane-se quem assim pensar. Há bem mais jovens lusodescendentes diplomados em França do que os que saem agora de Portugal.
O peso da Comunidade portuguesa é enorme. E não é só de agora, já vem do século 16. Veja o tal episódio sobre os Judeus e verá. E tem vindo a ser reforçada todos os anos. Está para durar.
Eu não quero estabelecer o “hit parade” de quem é mais numeroso ou de quem é mais importante. Não é isso que eu quero dizer. Quero apenas chamar a atenção para o facto dos meus colegas jornalistas portugueses falem apenas do que sabem, e por isso falam dos que hoje deixam o país. Mas desconhecem completamente aqueles que já cá moram há muitos anos ou que já cá nasceram. E como não os conhecem, fica um grande apagão!

© Descendências/António Borga
© Descendências/António Borga

França vive um momento politicamente conturbado, com a extrema-direita a ganhar terreno e um discurso identitário cada vez mais agressivo no espaço público. Mesmo sendo vista como uma comunidade bem integrada, a presença portuguesa não deixa de ser estrangeira aos olhos de certas narrativas nacionalistas. Que leitura faz deste contexto político atual? Sente que há riscos reais para a coesão social das comunidades migrantes em França, incluindo a portuguesa, ou acredita que a comunidade luso-francesa continua a ser vista como um caso à parte, protegido dessa radicalização?

França está a viver exatamente a mesma situação que vivem os demais países europeus, incluindo Portugal. E os Portugueses de França não vivem num mundo à parte. Por isso têm comportamentos eleitorais idênticos aos que se passam em Portugal, em França e nos demais países. Não há que estranhar.
Em Portugal, a Extrema Direita está a crescer, como cresce em França, na Alemanha, nos outros países europeus, porque devemos estranhar que os Portugueses de França seguem as mesmas tendências.
Pessoalmente, nunca senti a necessidade de bater à porta de um Partido Político e passar a ser militante ativo. Mas apelo para que haja mais militantes ativos nos Partidos portugueses em França. É importante para mudarmos as mentalidades em Portugal. Como os políticos não vêm documentários… temos de chegar a eles de outra forma.

© Descendências/António Borga
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Durante décadas, o movimento associativo desempenhou um papel central na coesão social da comunidade portuguesa em França, servindo de ponte entre gerações, territórios e identidades. Foi motor de integração, espaço de resistência cultural e laboratório de cidadania ativa. No entanto, o contexto atual é bastante diferente. Como analisa hoje o estado do associativismo português em França? Está em crise, em renovação ou simplesmente a adaptar-se a novos tempos e a novos públicos?

Claro que a socialização das sociedades nos anos 60 e 70 não é a mesma no século 21. Isto que eu estou a dizer é uma banalidade, mas é verdade que as práticas associativas dos Portugueses, dos Franceses ou dos Chineses, não é a mesma. As associações da Comunidade portuguesa de França vão seguindo esta mesma transformação. Na altura as pessoas recriavam, nas associações, o terreiro que tinham deixado nas aldeias de onde tinham partido. Hoje têm esse terreiro no bolso, num telemóvel.
Então, é natural que muitas associações vão continuar a desaparecer e que as atividades associativas se adaptem às sociedades atuais. Não é nada de estranhar. É até muito natural. Até nem sei como muitas associações duraram até hoje, é sinal de grande persistência dos seus dirigentes, mas a lei da vida é assim mesmo…

Uma das grandes interrogações da comunidade portuguesa em França tem sido a da transmissão: como passar a língua, os afetos, a cultura, a ligação a Portugal aos filhos e netos que já nasceram em solo francês? Na sua leitura, como tem evoluído essa relação intergeracional? Sente que há um novo tipo de pertença em construção, mais fluida, menos presa ao território mas ainda profundamente portuguesa?

Há duas coisas muito diferentes. A pertença a Portugal é evidente. Mesmo nas jovens gerações, vestem com orgulho a camisola da Seleção, dizem que têm origens portuguesas. Este é um sentimento crescente de uma Comunidade que eu considero “descomplexada”.
A outra coisa é o ensino da língua. Portugal não consegue resolver este problema. Pelo contrário, o caso agrava-se de ano para ano. Então, o mais fácil é responsabilizar os pais, dizer que deviam ser eles a ensinar português aos filhos.
O número crescente de casais mistos, o facto dos pais já não falarem bem português e das crianças saírem de manhã de casa e entrarem à noite vivendo todo o dia num ambiente francês, não ajuda a resolver o problema.
Mas, contrariamente a uma ideia errada, a nacionalidade não está relacionada com a língua. Até porque há muita gente a falar português e não tem nacionalidade portuguesa. Por isso, eu encho-me de orgulho quando vejo jovens que não falam português a defender, com garra, Portugal. Isto é bonito, não é?
Num dos documentários, sobre empresários, abordo uma questão interessante que é a da transmissão das empresas dos pais para os filhos. É uma passagem muito interessante.

Olhando para trás e para tudo o que construiu com o LusoJornal, com os seus projetos culturais e agora com esta série documental, sente que a sua missão está a ser cumprida? E o que ainda sonha fazer, enquanto narrador atento da história que os outros raramente se dispõem a contar?

Eu não me atribuo nenhuma missão em particular, até porque faço coisas porque gosto, porque me sinto bem e porque me divertem.
Além do jornalismo eu sou Presidente da SEDES Europa, uma delegação da associação cívica portuguesa SEDES. Sou também Presidente de um Comité de Geminação na cidade onde moro, fui Presidente-fundador e agora sou Vice-Presidente da Plataforma dos Órgãos de Comunicação Social Portugueses no Estrangeiro, sou membro do Conselho consultivo do Consulado Geral de Portugal em Paris, e até sou membro do Conselho de Administração de um colégio público na região de Paris… Nenhuma destas funções é remunerada, claro… digo apenas isto para dizer que eu entendo que cada Mulher e cada Homem devem ser interventivos na sociedade. Não é uma missão, é um dever. E por isso, espero continuar ativo por muito mais tempo. Seria um sinal de que a saúde me permite continuar.
Sonhos, tenho alguns, mas na verdade, na minha vida atingi sobretudo sonhos que nunca tive… e isso é ainda é mais bonito do que ter sonhos por realizar.

Por fim, se pudesse deixar uma mensagem ao Carlos Pereira de há 20 anos, aquele que estava a começar a dedicar-se à causa da comunicação em França, o que lhe diria hoje, com tudo o que aprendeu e viveu neste percurso?

É assim mesmo pá! A inconsciência faz parte do sonho. E sonhador como és, vou orgulhar-me de ti daqui por 20 anos!

2 Comentários

  • Ademar Rodrigues
    4 dias ago Publicar uma Resposta

    Excelente,não podia ser de outro jeito,o Carlos Pereira é um homem de mão cheia,anda muita gente a falar de emigração ou imigração sem conhecer nada sobre o assunto,o Carlos é um homem ligado a estes assuntos desde semprepidia escrever muito mais,pois á assunto quanto baste,mas quero daqui dizer ao Carlos que continue,pois desde que deixou a presidência do CCP,nunca mais ouve quem continuasse o trabalho deixado por ele,amigo Carlos Pereira um forte abraço daqui de Baião,terra do nosso grande amigo JLCarneiro,mas não nego o meu berço,dou transmontano de Carrazeda de Ansiães,grande abraço meu amigo.

  • Cristina Passas
    4 dias ago Publicar uma Resposta

    Excelente! 1984, ponto de partida para o Carlos, ponto de chegada para mim… mas para quem têm duas pátrias como diz o Carlos, a leitura semanal do Lusojornal é obrigatória. Parabéns Carlos pela jornada brilhante que não se acomoda, que busca incessantemente valorizar a emigração, nomeadamente a emigração em França.

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