Comer sem azeite é comer miudinho

Migas e comeres merendeirosa

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Petiscar, botar uma côdea no bucho, chichar um pitalho dela
sempre foi uma rotina na região, que tantas vezes começava nos intervalos do trabalho jornaleiro e acabava à joldrice no escano de uma lareira ou numa visita a uma qualquer adega de um amigo, vizinho ou familiar. Os petiscos, merenduqueiros ou não, serviam de entretém aos repastos que se avizinhavam. Peguilhava-se, tomava-se de lambisco de tudo um pouco: peixinhos do rio fritos ou escabechados [são dos petiscos mais popularizados nas zonas ribeirinhas da região], iscas de presunto de cebolada à moda das cozinhas aldeãs vinhaenses ou os montalegrenses bifinhos de presunto fritos numa batedura de ovos com miolo de pão à mistura, salada de mílharas [é um aproveitamento das ovas de peixe do rio, depois de cozidas e avinagradas, que os “labregos” vinhateiros incutiram nos nossos hábitos alimentares], fatias de língua de porco fumada [trata-se de uma prática raiano-montesina, também de aprendizagem galaico-leonesa], chichorros no tacho e pestorelho de vinagrete à moda dos freixenistas, rojões do redenho, soventre, balho e do abano de qualquer lado, alheiras e tabafeias grelhadas, chouriças e salpicões, couratos e embeirados, calugas e coirachas assadas na brasa, escabeches do que fosse possível, passarinhada de qualquer forma [era comer merendinho dos caçadores notívagos, essencialmente furtivos, do Planalto Mirandês e Vale do Douro Superiror], fritadas e guisotes de miudezas — corações, fígados, rins e murçós [julgo que a flaviense Adega do Faustino ainda reproduz estas tradições], tripas aos molhinhos [petisco vila-realense, preparado a partir das tripas e do bucho da vaca, deitado ao mundo pelas mãos da Dona Fernanda Brites na sua Casa de Pasto Chaxoila, aí pelo ano de 1954/55], cristas de galo estufadas, guisadas ou grelhadas [«…é coisa das raias mirandesas»], sangue de cebolada [é outro dos comeres petisqueiros dos dias de matança na Terra Fria Transmontana] e sangue grelhado às cavalitas de uma folha couveira [fazia-se, dois a três dias após a matança do reco das casas mais afidalgadas, nas aldeias de Penajóia a São Martinho de Mouros], vinagretes de polvo das tabernas vileiras ou das merendas das vindimadeiras, molejas fritas, grelhadas e estufadas [“éran correnties nas poboaçones de l Praino Mirandés”] … quase sempre com o pretexto de uma prova de vinho adegueiro ou de mais uma sessão de puxa palavra. E como em qualquer evento, reencontro ou simples desafio amistoso, a cozinheira tinha logo um petisco novo: como aquele fígado de pato (ou de ganso) salteado no azeite e num tempero de generoso com pimenta preta, o bacalhau de escabeche da Dona Clotilde Eugénio de Vila Verdinho ou as tripas de convite da Ti Benedita dos lados de Vinhais [tripas de carneiro cozidas em molhinhos, a seguir refogadas numa boa azeitada, com um assim-assim de cebola, alho bem disfarçado, duas a três folhas de louro, salsa a colorir e malagueta à medida dos petisqueiros…].
Mas o mais certo era o reinventar das heranças maternais.
As omeletas de roda [tortilhas nas zonas raiano-castelhanas do Nordeste Transmontano, e bôlas da sertã na Beira duriense] faziam-se no azeite aquentado e de quase tudo o que desse para envolver na batedura dos ovos: grelos e porretas de ceboleiras, batata e cebola às rodelas, pimentos e tomates desgrainhados, miolo de pão borneiro, rebentos de norças brancas, folhicos de beldroegas, cogumelos de fritura… chouriças de carne, aparas de presunto e toucinho, lascas de bacalhau demolhadas e sardinhas de sobra. Todavia, no Vale do Douro Superior, as omeletas de espargos bravos, simples, aceboladas ou com umas rodelas de chouriça de permeio, eram e são as mais apreciadas. Já agora, não tendo a forma tradicional de roda espalmada mas de omoleta quadrilonga e espadaúda, a Dina Morais da Taberna do Carró [denominação restaurativa em reconhecida homenagem ao senhor António Rodrigues, o “Carró”, pai do jornalista Rogério Rodrigues e avô do encenador e produtor teatral Tiago Rodrigies, proprietário de uma antiga taberna moncorvense] tem sido o repositório deste e de outros sabores durienses. E uns espargos encantados?, tipo “peixinhos da horta”, que já ninguém se dá à canseira de os fazer!

Míscaros são coisa de gente de aldeia…
diziam os vileiros citadinos. E são! Porque, ser apanhador de cogumelos era um complemento educativo para os jovens campesinos transmontanos. Dizia-se, também, que “no tempo dos cogumelos não há más cozinheiras”. Talvez fosse verdade noutros tempos, talvez, mais pela disponibilidade e grata riqueza nutritiva do que pela arte culinária que herdámos. Actualmente pouca gente aceitará como ditame este provinciano alegado; no entanto, ainda deparamos com excelentes teimosices gastro-micológicas de outrora [da vila-realense Dona Elza do Café Realvites ao Chefe mogadourense Eliseu Amaro do Restaurante A Lareira, entre outros…], além das iniciativas pioneiras na preservação e divulgação promovidas pela Associação Micológica “A Pantorra”, onde relevo as figuras de dois dos seus fundadores – o médico Xavier Martins e a bióloga Marisa Castro. Mas… cozinhar cogumelos não é para qualquer um, muito menos recolectá-los! A sua confecção ainda se reveste de aspectos algo secretos, como, por exemplo, na confecção de doces, compotas, licoragens e escabeches (…) Preparam-se essencialmente como petisco ou de acompanhamento e, mesmo assim, das formas mais variadas: guisados, às vezes grelhados, na compostura da sopa e do arroz, em omeletas de molho tomatado, de fritada com tomate e pimento, salteados em azeite e alho, de caldeirada, … em escabeche ou de vinagrete [que bem os avinagra o Chefe João Pedro Gomes!, ilustre emigrado moncorvense há muito a espalhar os seus saberes por terras andorrenhas].

No caso dos cogumelos de escabeche
escolhem-se sempre os mais novos, acabados de sair da terra
cortam-se em fatias finas e põem-se a marinar durante duas horas em azeite abundante. De seguida temperam-se de sal ralo, folhas de louro, cabeças de cravinho, pimenta branca e bastante vinagre de vinho… e revolvem-se ligeiramente (…) Antes de servir, polvilhe-os com salsa picada e cebola de picadinho. Dizia-me a minha tia Lurdes: os mais utilizados são os canários, outros, por aí, chamam-lhe rapazinhos [Cantarellus cibarius Fr.], que se apanham durante quase todo o ano, debaixo de qualquer tipo de árvores, e as sanchas [Lactarius deliciosus (L.:Fr.) Gray] — pinheiras, telheiras, esquerrumilhadas, vaquinhas vermelhas, consoante os locais — que se recolhem à fartura nos pinhais mais carumados, do início das chuvas outonais até às primeiras geadas já de cheiro natalício. Os primeiros são de cor amarela, como a gema de um ovo, ou alaranjada, de pé curto, carnoso, sem bolbo nem anel, da mesma cor que o resto da frutificação. Os outros, as “sanchas telheiras”, são de cor alaranjada, da cor da telha, que com a idade passa a um tingido de vermelho e verde, sabor picante em cru, pele muito lisa e algo viscosa; o pé é oco e curto, da mesma cor que o chapéu, mas com algumas manchas mais escuras separadas. Não sendo a excelência dos cogumelos, nem a inveja dos mestres da cozinha (?), no Vale do Douro Superior e em parceria com os roques (rocas, marifusas, centieiros, frades ou fradelhos, patamelas, pateirinhas…) [Macrolepiota procera (Scop.:Fr.) Singer], são os míscaros mais utilizados nos guisotes outonais.
Salteie as ditas e/ou os ditos em azeite fervente, já bem fervente.
Num tacho com o fundo também coberto de azeite faça um refogado de cebola às rodelas, alho esmagado e cubos de presunto ou cibitos de chouriça gorda; depois junte-lhe os cogumelos já salteados e tantinho de água quente. Tempere o guisote com pouco sal, ramilhos de salsa e tomilho, folhas de louro e vagens de piri-piri; deixe cozer um bom bocado em lume brando.

Em relação aos cogumelos embrulhados em folhas de couve
(estou crente que é uma prática herdada das antigas borralhadas)
tanto são utilizados os míscaros gordos, tortulhos ou tantulhos [Boletus edulis Bull.:Fr.], como os míscaros das estevas [Leccinum corsicum (Rolland) Singer] ou mesmo os dos pinheiros [Boletus badius Fr.]. Depois de bem lavados, envolva-os, um a um, numa folha de couve besuntada de azeite à fartura, e coloque-os ao lume numa caçarola. Acrescente-os de vinho fino não muito envelhecido, as indispensáveis folhas de louro e a cebola cortada às rodelas. Tempere de sal e pimenta preta, e tape o tacho. Quando começar a formar vapor – a bufar ligeiramente – substitua a tampa por um pano humedecido e espere que a condensação da soltura dos vários aromas impregne os cogumelos embrulhados na penca ou na galega… em qualquer «berdosa» velha.
Outros cogumelos comestíveis e ainda de recolecção usual: cogumelo das burras ou dos lameiros [Agaricus campestris L.:Fr.], pilongos ou pilongas [Agrocybe aegerita (Britz) Fayod], cogumelo dos castanheiros, laranjinhas ou rebiós [Amanita caesarea (Scop.:Fr.) Grév.], cilarca ou siricaia [Amanita ponderosa Malençon&Heim], pé-violeta ou pé-azul [Lepista nuda (Bull.: Fr.) Cooke], pé-vermelho [Boletus erythropus (Fr.:Fr.) Krombh.], roda das bruxas [Marasmius oreades (Bolton.: Fr.) Fr.], cardinas [Pleurotus eryngii (D.C.: Fr.) Quélet], repolgas [Pleurotus ostreatus (Jacquin: Fr.) Kummer], trompeta dos mortos [Craterellus cornucupioides (L.: Fr.) Pers.], pantorra ou belfurada [Morchella esculenta Pers.: St. Amans.], entre outros. Em caso de dúvida, não os comam!

Nas refeições de muitos transmontano-durienses
(da raia planáltica mirandesa i de ls cunfines de l Douro Superior)
as sopas de pão ou migas de pão, acompanhadas de um caneco de café ou de um copo de vinho carrascão, já foram prato único: de madrugada, pelo meio-dia, à merenda e nas ceias do fim do dia. Daí aquele lamento sofrido dos durienses: “de manhã me dão migas, ao meio-dia migas me dão, à tarde pão com migas, à noite migas com pão”. Actualmente, tanto servem de petisco, de lastro ou – mesmo – de mata-bicho, como continuam a ser refeição completa. Azeite, velho ou novo, no refogado e de acerto final do tempero é que nunca podia faltar! Se inicialmente eram, apenas, as avigoradas migas das alheiras – sopas das matanças – com o pão do dia anterior, água da cozedura das carnes para enchimento e alhos rijados na banha do reco… as doenteiras sopas de cavalo cansado de pão do próprio dia, vinho tinto fervente para o amolecimento e açúcar amarelo como revigorante… as sopas de unto barrosãs – as sopas mata-fome – com o pão disponível no mosqueiro da cozinha, água bem aquentada e gordura da barriga do cevado… sem qualquer pingo azeiteiro, que era produto de rico-fidalgo… mais tarde o azeite tornou-se indispensável nestes pratos malgueiros que tantas gerações de transmontanos já criaram.
São, então, as providas migas de bacalhau
que diziam ser o comer favorito dos pedreiros e trolhas vileiros após o despegar do trabalho, as reputadas sopas de feijão-frade ou de outros grãos e as reconfortantes migas ou sopa dos pastores [esta era mais uma das tantas sopas do monte que as mulheres dos guardadores de gado lhes faziam à chegada a casa. Temperavam-nas de hortelã de horta e poejos ribeirinhos e abastavam-nas de tanchagens e labrêstos amarelos apanhados à beira dos caminhos … e por aí adiante.], sopas de ovos escalfados, migas de peixe do rio, migas de esparragos bravos de qualquer canto do Vale do Douro Superior, sopas secas de carnes [Por exemplo: as substanciais sopas secas do Restaurante Maria Rita-Jerusalém do Romeu, desde 1966.], migas de bispo de Urros, sopas de alho estrugido, tomatadas de alguidar de Freixo de Espada à Cinta [tão parenteiras das “tomatadas” apregoadas e vendidas nas ruas lisboetas do séc. XVI/XVII], sopas da segada (e da trilha) rijadas de azeite e alho [confeccionadas por toda a Terra Quente Transmontana e Planalto Mirandês], as múltiplas sopas da matança e roupas velhas, migas à lagareiro preparadas à moda dos foz-coenses, migas disto e daquilo… as olvidadas sopas de água fria ou os memoriais aguadinhos da Vilariça.
Segundo o Beto Castelo, ajeitavam-se num aguado bem fresco, com pão sobrante migado grosseiramente e de tudo um pouco o que a horta disponibilizava no momento, temperadas de azeite ao de leve, vinagre de vinho branco e cubos de presunto e/ou sal. O acondicionamento e transporte era feito num cântaro de barro que as alfandeguenses encomendavam aos oleiros do Felgar quando desciam aos termos de Cilhades.

Quando o porco fazia parte do cortelho e da salgadeira adegueira
as migas eram mais aprumadas e substanciais – bem mais ricas. Eram as migas dos ricos ou dos ilustrados pobres, por todo o Vale do Douro Superior.
O pão é um gesto de cada dia que não se explica.

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

Parte I

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