Elogio ao Azeite
A Honra das Emoções
Quem não ama o pão, o vinho e o azeite…
as mulheres e as canções… será um estúpido toda a vida.
Pouco me importa quem o sonhou, quem o escreveu
muito menos quem já o confessou. De qualquer forma, aplaudo tão simpática eloquência à tríade alimentar dos povos e dos locais onde reina a Oliveira ― onde o sol, os prazeres da sesta e a volúpia do corpo acrescentaram agrados não menos aprazíveis. O Douro e as Terras Quentes Transmontanas. O autor deste manifesto ― desta crónica de contento às honras das emoções ― pede, então, perdão aos comensais de circunstância pela utilização do Azeite nas comidas mais sensatas e solicita a protecção dos sábios que sabem afrouxar os cintos nas ocasiões que fazem desta prática não uma insólita extravagância senão a consequência de uma solene convicção. Aliás, (também o escrevi em tempos), o aroma dos guisados e as birras dos estrugidos, o cachondo dos grelos invernais, o capricho nos assados ou os mimos dos grelhados, o pico dos caldos ou o erotismo das saladas, o brio dos molhos e a desquebra dos cachicos avinagrados, a vaidade dos comeres mais abelhudos ou das patuscadas mais folgadeiras
até o perfume das viandas e a dureza da mulherada das mezinhas
não desobrigam nem aliviam o argumento de que comer sem azeite é comer miudinho. Todavia, um breve regresso ao passado é imperatório […] Não para o percebimento de meras curiosidades históricas mas para uma visão acontecida deste e destes alimentos, mesmo que os mitos gastronómicos de outrora desvaneçam temerosos intelectos ou suplantem os actuais mercantilistas de ocasião. Assim, não me escuso a referir que antepassados nossos entendessem que este alento da oliveira benairasse a inabilidade do apetite, amolentasse dentes desprevenidos, tivesse serventia na fortificação de cabelos tristonhos, acomodasse músculos fatigados, fosse ministrado aos moribundos como símbolo da vida eterna ou aos azarados para curar azias e tripas emperradas, irritações respiratórias, ataques de lombrigas, maus-olhados […] A esta mitologia de virtuosidades medicinais, proféticas ou sagradas
outros antecessores aditaram-lhe predicados alimentares
culturais e económicos (…) Os fenícios – povo navegador, como nós portugueses – traficaram-no com a escrita alfabética, os cristãos sacralizaram-no até aos limites do sobrenatural, os gregos, além das curtimentas de azeitonas, urdiram azeites verdes, azeitilhos lúbricos, de azeitonas pretas e os correntios – que, no nosso Douro de vinhos cheirantes, foram os azeites de verão, de inverno e azeites gordos. Por sua vez, a civilização etrusca, que tanto influenciou a cultura romana, entendeu reconhecer-lhe o elevado teor «proteico!», aplicando-o na alimentação revitalizante dos escravos. E os augustos romanos já não se escusavam a condimentar qualquer cozinhado com muito azeite e a confrontar as refeições mais ritualistas com as melhores azeitonas do império! Na cozinha bizantina os bolos de trigo eram fritos em azeite, enquanto as sopas, feitas de água e verduras, não o isentavam como tempero. Entretanto, os árabes iniciavam-se na conservação das azeitonas com os sobejos de sumos cítricos; os judeus, embora pouco dados às lides do campo, só admitiam wa gordura do azeite na confecção culinária e muitas vezes em abusivas quantidades – desde os ovos cozidos, às bolas sovadas, até às carnes ovídeas mesmo quando grelhadas. A intensificação da agricultura, o ruralismo crescente, o fomento dos mercados locais e o dinamismo dos almocreves, os repovoamentos régios ― do heroísmo e da procura da substância
a força crescente da Igreja ou a gulaima conventual
fizeram com que o azeite deixasse de ser o tempero das abstinências e o combustível das lamparinas para se eleger como a gordura de reserva ― o renascimento de uma alimentação mais expressiva ou uma prática indispensável na maioria do receituário das regiões culturalmente mediterrânicas. [Em resumo] de remate a este prólogo de enfeite, evoco aos mais abstraídos que a Oliveira e o Azeite são a memória dos povos dos prazeres do sol e dos calores da vida … a imortalidade da sua cultura, a magnificência do elogio ecológico. Por isso, caros leitores
gozem a aceitação da mesa, louve-se a singularidade do azeite
porque para este prazer – o prazer do azeite – não há castas, nem raças, nem ofícios, é para todas as idades, para todas as condições, para todos os países, para todos os dias […] pode associar-se a todos os demais prazeres e queda-se por último para consolarmos a perda de outros. E saiba-se que o azeite – com o vosso perdão – é o amante das comidas que os afortunados estômagos transcendem no prazer da mesa. E também se sabe que, sendo um bom amante, a amada não pode ser nada má (…) Nesta altura, evaporam-se utopias, regenera-se o destino e começam as despedidas com realidades comestíveis. Como o melhor de qualquer dieta é o prazer de quebrá-la, vamos a isso
apreste-se com umas laranjas e corte-as às rodelas
deixando pequenas tiras de casca. Retire-lhe o estorvo dos caroços e salpique com alho picado e um pouco de sal ao dente; de seguida, regue com azeite – azeite a raiar o verde picante. Simples. Esta laranja azeitada, que já foi merenda de meio-dia, acompanhava sempre com pão e azeitonas. Era o aproveitamento das laranjas mais ácidas. Posteriormente transformou-se na «laranja dos ricos» ou «laranja dos fidalgos» [freixenistas] para adornar assados de capão, cordeiro ou cabritadas. Actualmente serve-se como salada ou à sobremesa. Para acompanhá-la poderia rebuscar um refêgo de amêndoas com azeite – receita com origens árabes, cristianizada com a introdução do pão migado – uma boa merenda de verão no tempo das colheitas em alguns locais da Vilariça. Tem esta conduta
num almofariz esmague uma dúzia de amêndoas por pessoa
juntamente com dentes d’alhos. Vá adicionando o azeite e mude a pasta conseguida para uma terrina onde se junta água refrescada e sumo de limão; acrescente o pão migado e leve ao frigorífico. Poderia ainda relembrar uma pastada de azeitonas para barrar cadornos de pão centeio ― aquele peguilho dos guardadores de gado ou dos segadores quando apartavam de casa por períodos mais ou menos longos e as azeitonas novas ainda não tinham saído da árvore ― cuja arte será a de reduzir as azeitonas a puré, misturar-lhe sumo de limão e azeite de aparto, engrossando com miolo de pão fresco. Nestes vícios pouco contidos, porque não prosseguir com um caldo dos espárragos [?] apresados aos toros das oliveiras envelhecidas pelo tempo, onde os arados não chegam […] nas carrasqueiras ou nos mortórios recolonizados pelos matagais. Para confirmar tal gesto de arremedo faça assim
amanhe um bom manhuço de espargos bravos
cortando-os aos pedacitos, e escalde-os em água durante três minutos. Refogue, em azeite, alho picado, cebola às rodelas e chouriço partido em trochos bastante pequenos. No apuro certo, ajunte-lhe salsa esfarrapada, a água necessária, e deixe ferver. Tempere de sal e rectifique de azeite. (Uma boa migada de pão borneiro e um ovo mexido ajudam ao conforto dos apetites mais assanhados – e de que maneira!) […] Para evitar possíveis contenciosos, imagens enganadoras ou fúrias altíssimas, arroje-se, sem acanhos, à panóplia de sopas, caldos e migas que não recusam nem poupam o borrifado do azeite. Normalmente, para agasalhar os estômagos mais revolucionários, consagra-se ao azeite o seu mais fiel amigo – o bacalhau – cujos sabores gastrófilos se sucedem infinitamente. Deixo-vos a referência ao meu bacalhau favorito – o bacalhau no borralho
depois de bem demolhadas, escorridas e enxutas
coloque cada uma das postas entre duas fatias de presunto e entrouxe em folhas de couve; ate-as com baraço de uso nos fumados. De seguida, introduza os embrulhos na lareira e cubra-os com brasas mornas e alguma cinza ainda viva. Quando sentir o chiar do bacalhau é sinal de assadura aprontada. Retire os ditos do borralho e liberte as respectivas postas. Agora, afogue a borralheira do bacalhau com bastante azeite e enfeite com cebolas às rodelas. É para acompanhar com batatas a murro ou por uma grelada bem orvalhada de azeite. Também não resisto a dar-vos à prova virtual um bacalhau entalado… saído dos feitiços gastronómicos de uma bela mogadourense … como prelúdio para uma noite de míticas fantasias quando emparelhado com um vinho de frescura sensual. E se a trepa do palheto não atrapalhou a minha memória, como penso que não, para conseguir a gentileza dos préstimos de bacalhau tão endiabrado
primeiro demolhe as postas do dito em água gelada
que seja de um dia para o outro. Limpe-as das peles para fritar à parte, desince-as das espinhas estorvantes e transforme-as em lascas ligeiramente grossas. No fundo do tacho acomode rodelas de cebola, salsa picadinha, alhos laminados, cabeças de cravinho, colorau picante, sal e um cheiro de pimenta preta, as lascas de bacalhau passadas por uma aguardente velha e, por último, as batatas rodeladas. Regue, azeitando, e leve a lume brando até cozer, abanando o tacho de vez em quando para que o bacalhau fique [bem] entalado e a bufar a quentura dos condimentos. Ao servir, enfeite com as peles fritas e azeitonas quartilhadas na companhia do tal vinho ou de um bruto espumante das margens do Varosa, e termine com um doce de laranja xaropado ou com uma calda de pingos de mel. As outras fantasias são por vossa conta!
Nestes propósitos, a minha imoderada paixão por este símbolo da portugalidade leva-me [ainda] a mencionar outras transmontanices do bacalhau ― assado com pão centeio, à moda da bruxa valpacense, em sopas da segada, com chícharros migados de couves, de escabeche, na espiritualidade das pataniscas… ― que abusam mas nunca insultam o prazer do azeite […] Antes que S. Fortunato, patrono dos bons comedores, se exalte por tão luciferino prazer de comeres azeitados, principalmente pelos próprios ciúmes, deixo para escritas posteriores as peixadas, a caça, o pão e os folares. Porém, já que para alimentar o estafermo do corpo para que a inocência da alma se sinta bem nele, convide-se novamente o prazer do azeite, agora na doçaria
ferva-se de véspera litro e meio deste elixir
até ficar da cor do chá. Bata quarenta ovos com um quilo de açúcar, junte-lhe o azeite fervido e um copo de aguardente. Cibinho a cibinho vá acrescentando a farinha triga e tantinho de sal, batendo com a mão molhada no azeite até ficar frígida, ou seja, pronta a ser trabalhada com as mãos. Coloque os bolos conseguidos em tabuleiros com azeite, salpicados com farinha, e pincele-os com gema de ovo. Leve a forno previamente aquecido. O tamanho dos bolos é à medida dos artistas, e temos doçaina para toda a semana. São os bolos ou biscoitos de azeite; quando se excede na aguardente, chamam-lhe borrachões. Mas a pauta das ementas sacarinas azeitadas é longa e saborida, graças à popularização do açúcar e à paixão freirática pela doçaria. Foram as azeitonas doces, as cavacas, os romeiros económicos, os dormidos, os desgovernados matrafões, as rosquilhas, a mania das compotas de azeitonas […] a fritura das bôlas estendidas. Às vezes, o azeite só servia mesmo para untar o ferro da cozedura – é o caso dos canelões. Não queria terminar este mistério oleícola sem me referir a um dos presentes do Supremo Lavrador – as azeitonas de escabeche – que as mulheres durienses amanhavam como atributos mágicos. Preparam-se deste jeito
para meio quilo de azeitonas esquartejadas, numa tigela
amanhe uma malagueta, quatro dentes de alho esborrachados, um raminho de óregãos e um pequeno molho de tomilho, duas folhas de louro, uma colher de chá de alecrim picado, outra de sementes de funcho e outra de cominhos bem esmagados. Ajeite a mistura num frasco de vidro com tampa hermética e arrase com azeite amargo, até à dobra do gargalo. Feche o frasco e deixe a repousar durante três a cinco dias. Sem estrebuchar, agite-o antes de usar e guarde-o sempre em local fresco. (Abençoadas dulcineias que souberam transformar este conduto de rotina num prazer sensual de sabores.) Finalmente permitam-me outro incitamento e reclamar do entusiasmo presente para fixar de forma definitiva na nossa dieta alimentar a mais presumida de todas as gorduras – o azeite. E se somos atlânticos por posição
não deixamos de ser mediterrânicos por cultura e opção
onde quase todos se apregoam como descobridores do azeite através dos seus heróis ou da imaginação dos [seus] deuses. O que não sabem é que todas as coisas deste mundo começaram por não existir, excepto o azeite que desceu á terra para a utopia do sonho e da nossa memória colectiva. Talvez, então, tenha sido por esta razão que os romanos isentaram do serviço militar os homens mancebos que plantassem oliveiras ou que, para os sábios gregos, só as virgens e os homens puros pudessem tratar das azeitonas… e do azeite. Imitemo-los porque a utopia pode ser o destino do prazer e o prazer, a partilha da utopia ― pelo Azeite de Trás-os-Montes.
O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico