Lídia Marques

Lídia Maria Neves Marques, nasceu em Avanca, Estarreja, a 9 de setembro de 1966. Aos cinco anos, emigrou clandestinamente para França. Aí fez parte da sua escolaridade. De regresso a Portugal, tirou a licenciatura em ensino do Português e do Francês, na Universidade de Aveiro. Iniciou o seu percurso como docente em Ovar, passou depois por Lourosa, lecionou um ano em escolas francesas e, desde 1991, integra o quadro do Agrupamento de Escolas Dr. Manuel Laranjeira, de Espinho. É autora e coautora de vários manuais escolares de Francês, das Edições ASA. Traduziu para português, a obra “Lourdes racontée aux enfants”, publicada pelas Edições Italcards.
Em janeiro 2016, foi agraciada pela República Francesa com as Palmas Académicas, pelo seu trabalho ao serviço da promoção da língua francesa, sendo estas uma condecoração honorífica para homenagear como membros os eminentes e divulgadores da cultura francesa.

Quem é Lídia Maria Marques, a autora que está por trás das suas obras?
Antes de mais, sou uma mulher, mãe de família, professora, formadora. Sou o resultado das minhas experiências de vida, de uma infância e juventude por terras gaulesas, de contactos com pessoas de horizontes culturais diversos. Não me consigo definir como uma pessoa “linear”. Não sou isto ou aquilo. Não me consigo compartimentar. Sou ativa, persistente, sonhadora, exigente comigo própria e com a vida em geral. Respiro, penso, sinto. Por vezes, o desejo de exprimir o que sinto é mais forte do que as limitações rotineiras e então a escrita assume uma função libertadora.
Tem algumas memórias da sua infância, a viagem clandestina para França e esses anos passados num novo país que desconhecia?
Lembro-me perfeitamente da viagem de táxi até Vilar Formoso, das curvas da estrada, do ar grave dos meus pais. Da procura por um “passador” que nos ajudasse a fazer a “travessia clandestina”, das respostas negativas. E da aventura depois.
Estávamos em agosto de 1972. O meu pai trabalhava em França, em Bourges, há cerca de um ano; tinha vindo buscar a família. Mas só a minha mãe pôde tirar o passaporte. As leis da emigração da época, tanto em Portugal como em França, não permitiam a reunificação familiar. Por isso, o meu irmão e eu fomos “a salto”. Eu dizia na altura que iria “aos saltos” para França!
Em Vilar Formoso, a minha mãe entrou no comboio, com as bagagens. O meu pai, o meu irmão e eu metemo-nos literalmente noite adentro, pela via férrea. Eu ia aos ombros de meu pai. Recordo o ladrar dos cães, o barulho dos passos nas pedras da ferrovia, o medo de sermos apanhados. Lembro a visão apaziguadora da estação de Fuentes de Oñoro iluminada. Recordo ainda, depois, a angústia e os gritos da minha mãe, quando o comboio chegou, a abarrotar de gente. Foi impossível entrarmos. Não cabia nem mais uma pessoa. E ela pedia desesperadamente que a deixassem sair do comboio, para que pudesse ir ter com o marido e os filhos. Após alguns minutos aterradores em que pensei que o comboio partiria e que eu nunca mais veria a minha mãe, as pesadas malas passaram pela janela e a minha mãe, finalmente, conseguiu sair do comboio. Recordo a espera, de largas horas, por um comboio em que pudéssemos seguir viagem, da chegada angustiante a Irún, da travessia da fronteira com Hendaye, do meu pai erguendo os dois únicos passaportes no meio de uma onda de gente, do medo que nos mandassem parar e o alívio, mais tarde, no comboio que nos levou até Bourges.
Aprendi rapidamente a falar francês. Tive aulas de português, oferecidas na altura nas instalações da associação portuguesa local. Dancei folclore, participei num grupo de teatro e, juntamente com outros jovens lusodescendentes, animei um programa de rádio. Fomos todos mobilizados pelo António Garcia, que foi presidente da CCPF. Mantive os laços com Portugal, onde passava sempre um mês de férias. Quando tive de regressar ao país natal, a adaptação foi difícil. Mais tarde, regressei a França, depois de concluir a licenciatura, como assistente de português em Tours. Hoje, sinto-me bem a viver em Portugal, embora goste de voltar a França com alguma regularidade.
A licenciatura em Português/Francês foi fruto dessa ligação aos dois países, ou mera coincidência?
Sim, foi. Em criança, brincava a ser professora: as bonecas eram as minhas alunas. Tive aulas de Português em Bourges e foi lá que realizei os exames portugueses. Quando a família regressou a Portugal, anos mais tarde, pareceu-me óbvio que essa era a via a seguir, tirando partido das minhas competências nas duas línguas.
É autora e coautora de vários manuais escolares em Francês, tendo sido agraciada pela República Francesa com as Palmas Académicas, uma distinção honorífica que homenageia personalidades que se destacam na divulgação da cultura e da língua francesas. Como se sentiu com este reconhecimento do Estado Francês?
A condecoração das Palmas Académicas foi um momento marcante para mim. Sinto-me grata. Foi o reconhecimento da França por todo o trabalho desenvolvido para a promoção da língua e da cultura francesas, na escola onde ainda hoje trabalho: coordenei durante muitos anos uma secção francófona; desenvolvi, com o apoio dos meus colegas, projetos como a Festa da Francofonia em Espinho, as Olimpíadas do Francês, o Concurso interescolar da canção francófona, a certificação DELF, numerosos intercâmbios escolares e visitas de estudo a França.
A concepção de manuais escolares surge no seguimento de um convite da Editora ASA. Já são oito. O nono projeto já está em andamento.

Lançou em 2025 o livro Os Amigos do Largo. Qual é a mensagem deste conto, quem é a Dona Guidinha, e porque é que a mobilete mudou de azul para vermelho?
A história estava pensada — e até escrita — há alguns anos; aguardava, como se costuma dizer, no fundo de uma gaveta. A constatação de que as crianças, hoje em dia, quase não brincam no exterior, a falta de liberdade e de tempo para explorarem o mundo lá fora, bem como as contingências da vida quotidiana, mantêm-nas dentro de quatro paredes, em frente a um écran, com poucas interações sociais. Os amigos do Largo (reparem na maiúscula) é uma apologia do largo como espaço social de encontros, descobertas e partilhas. É uma viagem à infância.
O livro celebra os laços entre gerações e a importância da comunidade, da amizade, da convivência e da solidariedade entre pessoas de diferentes idades.
A Dona Guidinha é a guardiã das memórias da infância, dos valores da amizade intergeracional e da partilha. Tem algumas semelhanças comigo, nomeadamente a experiência da emigração. Também tive uma mobylette azul. A da Dona Guidinha é vermelha, justamente para distanciar a personagem de mim. Quando se escreve, há muito de nós, mas não podemos confundir personagem, narrador e autor.
Como foi este processo de passar dos manuais escolares, para a escrita de um conto, onde acima de tudo procura as emoções dos leitores?
Ambos requerem criatividade e organização. Estou a aproveitar a pausa proporcionada pelas vigências dos manuais para a escrita criativa. O processo de criação e de estruturação de um projeto escolar é muito exigente e rouba-nos muito do nosso tempo “livre”.
Na sua opinião, num mundo dominado pelas séries em streaming ou os videojogos, a leitura é ainda o veículo cultural essencial para a formação da cidadania?
O hábito de leitura deve ser fomentado desde muito cedo, tanto pela escola como pela família, e cultivado ao longo da vida. Uma criança, um jovem e um adulto devem ter tempo para tudo: para ver uma série, para jogar videojogos, mas também para querer ler. Um aluno que lê apenas por imposição da escola dificilmente se tornará um adulto leitor.


Segundo vários inquéritos, mais de metade dos portugueses não lê livros. Mais do que incutir este hábito nos mais jovens, é necessário primeiramente estimular a leitura em contexto familiar?
A família é o berço de tudo: dos afetos, da formação do carácter, dos valores com que queremos nortear a nossa personalidade. Mesmo que a família não tenha hábitos de leitura, um jovem pode aprender a gostar de ler, se for estimulado nesse sentido. Em minha casa, quando era criança, não havia livros, a não ser livros religiosos. No entanto, descobri o superpoder da evasão através dos livros. Por isso, me tornei frequentadora assídua da biblioteca municipal de Bourges, onde passava grande parte do meu tempo livre. Mas sim, é fundamental estimular a leitura em contexto familiar, mas não apenas durante a pequena infância. Frequentar livrarias, levar um livro para a praia ou quando se vai de férias, ir à feira do livro, ir ao cinema ver a adaptação de uma história, tudo isto contribui para fazer entrar a leitura nos hábitos familiares.
Pode-nos revelar alguns dos seus projetos para 2025? Já temos novo livro na calha?
Tenho outro conto infantojuvenil já escrito, intitulado Lu e as histórias de piolhos, à espera de ilustrações e de editora.
Acabo de participar na coletânea Aos Ombros da Minha Mãe, da Editora Cordel D’Prata, com o texto Dias de Chuva. É uma homenagem à minha mãe, que viveu numa época em que era muito difícil ser criança e ser mulher.
Estou ainda a terminar um livro que decorre da minha atividade profissional. Deverá chamar-se Hoje, a Stora Passou-se. Trata-se de um retrato da escola dos nossos dias, através do testemunho de um aluno atento e observador que assume o papel de narrador, descrevendo o caos instalado dentro da sala de aula: a indisciplina crescente, o desespero da professora e as situações absurdas que se acumulam, dia após dia.
Além disso, está em fase bastante avançada a elaboração de um livro de atividades lúdicas e de jogos, em língua francesa, para a descoberta de Portugal, da sua língua e da sua cultura. Está bastante completo e, julgo eu, inovador. Poderá ser adaptado a outras línguas. Aguarda ainda editora. E finalmente, em 2027, será publicado o próximo projeto para o ensino/aprendizagem do Francês, para o sétimo ano, pela Editora ASA.
Uma mensagem para todos os autores, criadores e artistas do mundo.
Não pensem que não têm tempo ou talento para escrever, para criar. É sempre a altura certa para começar. A vida é demasiado curta para adiar os sonhos!
