Os beldros, as ditas ervas da pobreza
De prólogo a esta viagem comestível, claro está!
Não pode faltar esta [exclusa] sopa de beldros que ainda providencia muitas cozinhas caseiras durienses em épocas veraniças. Nem será necessário ter horta, basta passar por perto de uma. É de feitura rápida e dá para uma família das grandes.
Num tacho de amanhar sopas aguadas, ou de arranjar caldos mais guarnecidos, junte três a quatro batatas médias cortadas aos quadrados pequenos, aí uma ou duas cenouras fatiadas às rodelas para arrumar gosto adocicado e deitar alguma cor à sopa, azeite que não lhe falte, e leve a cozer em água temperada de sal. Esmague tudo com um garfo e acerte os temperos ― sal ou tantinho de presunto gordo e azeite, um enfeite de salsa ou de hortelã. Uns minutos antes de servir acrescente-lhe as folhas dos beldros esfarrapadas, depois de uma ligeira cozedura e de bem escorridas, e deixe levantar novamente a fervura. Fácil, muito fácil!
Não há erva tão ruim que não tenha a sua virtude…
Ditado popular
Porque abundam muitos outros, também eles comestíveis
os beldros que, nesta altura, compro na praça de Mirandela à dona Mª do Céu, os nossos, os beldros-mansos, (os) bredos-de-comer, bredos-roxos ou bledos, ao que me parece, apenas em falares populares junto à raia galega e castelhana, denominações alargadas a diversos taxa, incluindo de outras famílias botânicas
a espécie Amaranthus blitum L. (ou Amaranthus lividus L.)
é uma planta espontânea em Portugal Continental (também aparece na ilha da Madeira), cosmopolita, oriunda da América tropical e subtropical, herbácea de folhas tenras e flores muito pequenas. São ervas de boas hortas e de colheita cautelosa. Servem para preparar sopas, caldos e esparregados — até para ajeitar guisados — enganar omeletas, tortas e tortilhas, se for caso disso. Sempre cozidas para remoção das substâncias indesejadas – saponinas, nitratos, ácido oxálico (…), e água da cozedura sempre rejeitada.
Coisas da lexicologia. O vocábulo “bredo” [“bledo”] será [?] originário do termo grego blíton [blíte], «idem», através do latino blitu-, [blitum], «bredo». Porém, «beldro», pelo que nos transmite a maioria dos dicionários de língua portuguesa, é um provincianismo transmontano. Inclusive, tal como na Galiza, em sentido depreciativo, como sinónimo de sujo e envelhecido ou de espírito insultuoso e difamatório, e a “beldra”, como rameira. Ou tudo isto será um distúrbio fonético? No entanto, parece que já usávamos a palavra «beldro», em todo o território nacional, como identificativa para a espécie Amaranthus blitum L. (e outras aparentadas) desde o séc. XIX. Por sua vez, Amaranthus procede do grego amaranthos que quererá dizer a “flor que não murcha” ou, talvez, aludir à imortalidade daquele ser [adjectivo usado por Dioscórides para se referir à planta e ao nome associado ao local Amaryntus e ao templo Amaryntia – da deusa Ártemis – na ilha de Euboea pela mitologia grega]. Inexplicavelmente tais palavras – beldro ou bredo, assim como outras… – foram enxotadas do erudito Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa [Verbo. Lisboa, 2001]. Vá lá alguém explicar [-me] tão estouvados esquecimentos!
Esta [velha] família amaranthaceae
que se pavoneia com flores de veludo que mais parecem as moncas de uma perua acabada de cortejar ― ‘moncos-de-perú’ tal como de aproveito a denominam os populares mazatecas de Oaxaca, terra da enigmática Maria Sabina, [principalmente em relação às espécies Amaranthus caudatus, a tal erva que tanto incomoda a indústria dos agro-químicos pela sua resistência aos glicosatos, cruentus, hybridus, spinosus …], que a incorporam na tenrura dos seus quelites e numa multidão de ingredientes para colorir o extravagante mole verde — desde que abarcou as chenopodiaceae [APGII 2003] das acelgas e dos catassóis já conta com mais de centena e meia de géneros e umas duas mil e quarenta espécies. E nenhum membro deste género Amaranthus, «difícil», que agrupa setenta espécies das quais dezassete são de folhas «fáceis» que se podem comer, tem sido discriminado por ser tóxico, mas, quando crescem em terrenos de culturas recorrentes a fertilizantes químicos, são bem conhecidos por concentrarem nitratos em doses significativas nas suas folhas. Nitratos que hoje se sabe estarem implicados em distúrbios complexos de saúde.
É por isso desaconselhável consumir esta planta se for recolhida
em solos sujeitos a práticas agrárias abusivas.
Além disso há que ter em conta que o Amaranthus hybridus L.
o [tal] beldro-vermelho muito comum em terrenos cultivados — pode hospedar nematoides, e consumido em exagero na quantidade e na frequência, tal como com outras espécies arroxadas, seja inadequado ao regular funcionamento dos rins. Não deixam de ser ervas [ditas] da pobreza e de potencial a rondar o infinito.
Colóquios dos simples, e drogas he cousas mediçinais da India… de Garcia de Orta – o alentejano que ainda foi clínico do azarento D. João III – impressos em Goa, 1563, [Imprensa Nacional. Lisboa (1983)], a primeira obra de farmacopeia médica e a primeira (europeia) editada na Ásia, já lhe floreia agradáveis elogios, e Anchora Medicinal para conservar a vida com saude…, 1721, de Francisco da Fonseca Henriques, o doutor Mirandella na magnânima corte de D. João V, onde são discretas as virtudes que lhe possam ser atribuídas, são obras de referência que colocam os ditos bredos há muito na rotina dos portugueses.
É [em resumo] uma erva [daninha] comestível
de ciclo anual, nativa da região mediterrânea mas naturalizada em várias partes do mundo, que não gosta mesmo nada de sombra e prefere chãos húmidos, tida como espécie invasora, mas [bio] indicadora da qualidade nutricional dos solos
(é) uma erveira de porte erecto a prostrado
talos algo carnudos e glabros, de limbos foliares emarginados, inflorescências em glomérulos axilares, às vezes com panículas terminais rectas, flores geralmente trímeras, monoicas, [As flores individuais são masculinas ou femininas, mas ambos os sexos podem ser encontrados na mesma planta, (e são plantas anemófilas).], frutos praticamente lisos ou com rugas suaves e de maior comprimento que o invólucro da flor, sementes pretas de contorno circular ou ligeiramente ovais, ocupando quase toda a cavidade do aquénio. Em Portugal, a época de floração acontece de Junho a Setembro.
Pese embora as obrigatórias precauções a considerar
em relação à formação de nitratos nas suas folhas, esta infesta verdura é outra das ervas com percursos boticários identificados e de confessada excelência alimentícia.
De manifesto potencial como fonte de nutrientes tem narrativa consagrada nos manuscritos e respectivas abordagens agronómicas que guiaram a governança realenga das múltiplas propriedades de Carlos Magno nos séculos VIII/IX. Na Europa dos domínios do tal carolíngio império só seriam destronados pelos prestigiados espinafres [Spinacea oleracea L.] da corte francófona de Catarina de Médicis, pelo fim do século XVI com o narcisismo das futilidades da cozinha renascentista (…) No século XXI, ao que nos chega dos papers mais recentes de divulgação científica e de publicitadas prescrições de alguns dietistas, as suas sementes já fazem parte das recomendações nutritivas da NASA para missões de cuidados especiais. Já vão até aos céus! (É o que me contam!)
[E] todas as partes da planta são comestíveis
todas – as raízes, folhas, ramos, as flores e sementes, algumas delas até de forma corriqueira e de variadas maneiras — sendo alimentos [bem] dotados de proteína e de concentrações expressivas em minerais, como potássio e ferro, ou de alta disponibilidade de cálcio, magnésio e zinco, muito ricos em vitaminas A e C e ricos em vitamina B1 e flavonoides (folhas), principalmente quercetina e rutina. Atendem também às insuficiências da maioria de vitaminas recomendadas pelo Committee on Dietary Allowances. Apresentam lignina e celulose, mostrando-se como excelentes fontes de fibras insolúveis, com os teores totais superiores ao dos cereais mais comuns. O seu consumo é sugerido em casos de continuadas anemias e perante alguns transtornos hepáticos mais moderados (…) desnutrição infantil e durante o aleitamento materno, uma vez que favorece a produção de leite [é lactígena]. Todavia, será de assinalar que gestantes e lactantes devem evitar a utilização de flores, fazendo uso apenas das folhas. Além disso, a planta, devido aos níveis e à disponibilidade de cálcio, também é muito útil na formação dos ossos e dentes permanentes. Por sua vez, as sementes — alimento sem glúten — com um turbilhão delas por planta, podem ser consumidas torradas, misturadas em bolos, tortas, empadas, pães, saladas (…) e – de futuro – serem utilizadas (em pó) como complemento alimentar pela sua riqueza vitamínica.
Não são saberes – alquimistas, boticários, dietistas… – de causa recente! De há muito que os beldros, tais amaranthus, foram ervas de uso medicinal multifacetado. Profusas […] O persa Avicenna [980-1037], polímato do renascimento islâmico, evocada autoridade da medicina até ao século XVIII, num dos seus tratados, pelas informações de Francisco da Fonseca Henriques, entre outros autores estudiosos e comentadores da história da alimentação, dá-nos o mote para aquela mesurada convicção. As raízes usavam-se [externamente] contra infecções de pele, também no desafogo a enxaquecas e, em conjunto com as folhas, ajudavam no combate aos esquentamentos ou como cremes hidratantes e no tratamento de verrugas. Às folhas reconheciam-lhe capacidades diuréticas e laxantes. Até, pelos vistos, para resolver problemas de úlceras na boca se podia recorrer a um preparado obtido por percolação das ramas moídas!
Pela pluralidade de desempenhos e serventias
os «beldros» – «huauhtli», «shravani maath», «rajgira» (…) — os «amarantos» de outras linguagens desprovidas de engenho e órfãs de criatividade, com valor energético superior ao dos cereais mais conhecidos e sem os tais glútenes intolerantes aos pacientes celíacos (doença crónica do intestino delgado já descrita na Grécia Antiga), de sabor quase neutro e textura muito agradável, são consumidos regularmente em muitas partes do mundo, onde eles conseguem medrar, onde a mesa os conquistou
na China continental ou nos territórios caribenhos [Amaranthus cruentus L.], no México [A. caudatus L.] ou por terras filipinas [A. hypochondriacus L.], principalmente em regiões montanhosas com escassez de alimentos energéticos e de poucas fontes de proteína animal, como ainda acontece nas cordilheiras andinas de sociedades agrícolas simples. Aqui e em toda a região de influência quíchua eram relíquias culturais, largamente agricultados nas civilizações pré-colombianas, há bem mais de dois mil anos, elevados a «celestial» alimento até às proibições patéticas por símbolo de paganismo pela «inquisitorial» colonização castelhana. São ainda nos dias de hoje um maná gastronómico tanto nas cozinhas tradicionalistas como nas múltiplas derivas culinárias contemporâneas — dos atoles oxaqueños em fervura de sementes acompanhados pelos inseparáveis tamales com recheio das suas folhas às chichas bolivianas de celebração para a festa dos compadres. E sabemos que já seriam consumidas regularmente pelos indígenas brasileiros bem antes do século XVII!
Curiosidades. Alguns autores, nomeadamente no Instituto de Biología de la Universidad Nacional Autónoma de México que lhe tem dedicado atenções acrescidas, entendem que o filósofo-naturalista, Teofrasto, que citou os seus dotes, se reportava não a nenhum membro da [antiga] família amaranthaceae e muito menos ao indígena huauhtli mas a uma ‘erva-da-imortalidade’ (ou ‘erva-sempre-viva’) do género Helychrisum, erveira que os gregos usavam para fins medicinais e coroar estátuas de divindades. Esta confusão botânica é extensível a interpretações feitas a práticas e diferentes propostas de desempenho, como poderá ser no texto do filósofo indiano Vātsyāyana [Kama Sutra] para os ‘amarantos’ amarelos.
Já a Grécia dos nossos dias, nos cantos da Hellás
que encanta qualquer catador de saberes e vivências rurais, ao que conheço – por exemplo – pela tradição do popular vlita ou vleeta [Amaranthus hybridus L.], são povo pioneiro no seu alarvado gasto alimentar, consumindo-se de rotina as folhas e os brotos tenros cozidos, apenas temperados com azeite e vinagre de vinho ao servir — até com retsinas avinagrados na terra onde o musculado Héracles venceu o leão (de Nemeia) da ciumenta Hera! (Também com sumos de limão ou de laranjas mais aciduladas). No entanto, como planta cultivada ou de hortas familiares, o maior produtor europeu ainda será a República Checa, sendo, essencialmente, aqui e na Eslováquia (na Áustria e Hungria danubianas), aproveitados os grãos para produção de farinhas com as quais se confeccionam massas, biscoitos, bolachas, bolos e pequenos pães, que há muito ganharam epiteto de tradição. Da mesma forma os cozinham – em usos paníferos – nos costumes turcos da sobrevivência, curdos, arménios…! ou, então, integrados nos clássicos bulgur e tabbouleh
na cozinha sírio-libanesa — em redor do lago Qattinah
e nas margens do rio Orontes até à turca Samandağ — além dos refogados dos rebentos jovens em azeite, cebola e pimentões, faz parte da confecção de muitos pilaf para acompanhar cordeiros assados.
É comer bem repousante e de acenar à sesta
quando puxado por um arak envelhecido em ânforas de barro.
Em África o seu uso verifica-se em países como o Congo
Uganda ou Nigéria, onde a cultura é uma prática bem arraigada nas comunidades rurais e com contornos de pseudo cereal. Na Índia, com consumos há muito generalizados e como provável pátria da sua primitiva domesticação, diferindo – apenas – as preparações de Estado para Estado, de Goa para Querala, das modestas preparações saag para os condimentados cheera thoran, é a multiplicidade de usos e modos de confecção. Mais exemplos, bem mais, poderiam aqui ser citados, agigantando a certeza da sua universalidade não só ao longo dos tempos. E há quem compare o valor nutritivo dos (daqueles) «beldros» ao da carne, denominando-os «a carne dos pobres».
A capacidade de reconhecer as ervas bravias comestíveis
esta identidade tão nossa, esta causa que num futuro não muito distante [talvez] nos permita guarnecer parte do nosso equipamento básico de sobrevivência, partilhar tais segredos e saudar a valia da simplicidade perante as angústias depressivas dos actuais comedouros insociáveis. Comestíveis ou não, silvestres ou cultivadas, de horta ou de vizinhança dela, as plantas são antes de mais a harmonia que queremos com a Natureza e acima de tudo o respeito por nós próprios.
O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico
Lino Ramos
4 meses agoExcelente artigo, de abordagem sobre múltiplos tópicos. Gostei. Parabéns