Peixes e outros pescados

(…). Onde houver rios, haverá sempre peixe frito com ou sem erva peixeira (…)
E rios por aqui não faltam!
Até há bem poucos anos atrás…
ainda da minha lembrança moncorvense, o pescado do mar só aportava por cá: seco, de meia-cura, carregado de sal e em conserva enlatada. Chegavam apenas as sardinhas em caixas de madeira, queimadas e impregnadas de saleira, tairrentas, que se vendiam à unidade [até ao aparecimento do comboio e ao rasgo das novas vias de comunicação, a sardinha era o pescado mais consumido na região; estima-se, para a 2ª metade do séc. XIX, um consumo per capita de 65 a 70 sardinhas], as enguias em barricas e de salmoura, o polvo seco ou de meia-cura, o bacalhau salgado, as conservas de atum enlatadas e a raia de meio-sal para as mesas natalícias dos beirões durienses. De vez em quando lá vinham encaixotadas umas fanecas, alguns chichárros e um ou outro congro para as famílias de melhores posses.
Mais tarde, ainda no tempo das “tabernas ambulantes”, de Bragança a Miranda do Douro, este safio «congreiro» foi também comer de feirante, vendido assado com batatas cozidas e um molho assemelhado ao dos peixes do rio e da marrã de feira.
As alternativas, que colmatavam esta carência marítima — essa mania bem portuguesa de comer qualquer pescado — eram os peixes do rio: os nativos [barbos, bogas, escalos, trutas, bordalos, pardelhas, rabecos, tencas, panjorcas ou xardicas, rainhas, enguias…] e os mais recentes forasteiros [carpas, achigãs, percas, lúcios, góbios, alburnos, pimpões…].
A lampreia e o sável já nem ao Corgo aportam!
Finaram-se as lampreias à transmontana bem apresuntadas e o sável ao viés dos «corgueiros». Contudo, formulou-se mesmo assim um receituário atractivo e apetente: espetadas em varas de loureiro, que induzem a um excelente sabor, assaduras e grelhados de momento, escabeches que prometem longevidade às frituras, migas ribeirinhas, ensopados, sopas abonadas e caldeiradas de recurso, etc… Sempre com azeite! (…) A utilização da erva peixeira, também conhecida por hortelã da ribeira e alecrim do rio, constitui a diferença da cozinha dos ribeireiros da Vilariça em relação às das outras regiões de pesca fluvial, porque só por ali é que ela abunda e perdura a tradição do seu uso.
Os “ribeireiros” eram os pequenos agricultores que se deslocavam das aldeias vizinhas e da “vila” [Torre de Moncorvo] para o cultivo das courelas dos barrais da Vilariça. Foram, essencialmente, produtores de hortícolas e dos conhecidos «melões vilariços».

Quanto à utilização das azedas cunqueiras, outra das diferenças marcantes, outrora muito usadas na condimentação das finadas lampreias à transmontana e das míticas enguias do ou à moda do Sabor, pelo seu sabor acidulado, faziam o gosto e o papel do vinagre de vinho tinto. [Não sei se alguém ainda se dá ao trabalho de as amanhar desta forma! À moda dos pescadores da Foz do Sabor! Porque a Taberna do Lino, onde a Maria Carvoeira desafiava o mais pintado dos homens a fartar-se delas, já há muito que cerrou portas.]
“Do peixe a sardinha, da carne o bacalhau e depois a enguia…”
Dito popular
«(…) Espetadas de bogas é comida de pardelheiro, ribeireiro, meloeiro…
O que lhe quiserem chamar! Dizem, eles, que não podem (ou não querem?) andar de grelha às costas!» (…). Em varas finas de loureiro afiadas numa das pontas, com umas folhas deixadas de permeio, que eles amanhavam dos arbustos das bordaduras das hortas ribeirinhas, trespassavam as bogas, – barbos ou escalos, – estripadas e conservadas à mistura com ervas peixeiras, alternando com rodelas grossas de cebola e pedaços de pimento verde. Depois de temperadas com um nadinha de sal, iam a assar em brasas não muito vivas. (…)
Qualquer tipo de lenha serve para a abrasar a fogueira, mas se houver uma boa cepeira seca e uma molhada de vides, muito melhor… E uma ramada de eucalipto para uma boa cheirada, ainda melhor!
Na altura de irem ao prato esmaltado, ou só por cima do cadorno de pão, eram ensopadas com um molho de azeite, vinagre de qualquer vinho, alho picado, salsa de enfeite e colorau picante, que, por norma, já vinha preparado de casa na marmita e no taleigo da merenda. E os acompanhos não iam além de uma boa côdea de pão para arrebanhar o molho, a cabaça ou a bota-do-vinho para aguçar o apetite e empurrar os espinhentos, além da inevitável talhada de remate do “vilariço” e da não menos inevitável cachaça de amolecimento e aconchego à sesta. A seguir, ninguém resistia a uma boa sesta…
Migas de peixes do rio
É ao longo do rio Douro, das arribas da Sapinha à Foz do Tua, que ainda teimam em fazê-las. Embora o tipo de peixe seja o mesmo – o pescado no momento, – para uns é apenas cortado às postas e para outros, depois de cozido, tem que ser bem desfiado e desespinhado. Varia, também, o ritmo de cozedura, a força dos refogados, a condimentação facilitada [malagueta bufarenta, salsa sombreira, hortelã vulgar, poejo ribeirinho, erva peixeira, canela em vagem…], o derradeiro afinamento e a utilização ou não de ovos batidos – com ou sem vinagre – para o envolvimento do pão fatiado. São, por isso, bem diferentes as migas confeccionadas pela Dona Lucinda do Café Lameirinho das Cabanas de Baixo daquelas que se servem no Restaurante Bago d’Ouro de Barca d’Alva – à moda da Dona Prazeres, as preparadas pelo fozcoense Veríssimo Carteiro em contraponto às do Luis Barqueiro do Cachão de Arnozelo.

Truta é pescado de águas frias.
E é nos rios e ribeiros da Terra Fria Transmontana e do Baixo Barroso que o dito bicho se preza por passar a maior parte do tempo e proporcionar as melhores receitas: fritas na banha ou no azeite, assadas por cima das brasas ou em forno de lenha, simples ou recheadas de fatias de presunto [haverá poucos transmontanos, e não só, que não tenham num cantinho da memória aquelas saudosas trutas à moda de Boticas … no Restaurante Santa Cruz! Enfim! Os saberes intransmissíveis das irmãs Zulmira e Lurdes, legados desde finais do século XIX, e um prometido “vinho dos mortos” pelo senhor Armindo Cunha.] … abafadas num embrulho de presunto entremeado, de escabeche mais ou menos avinagrado, em formato sapeiro – as trutas sapeiras – à moda dos vila-realenses…
As trutas antes de irem ao forno, depois de recheadas de presunto, eram dobradas da boca para a cauda e atadas com um fio. Consta que assim seriam as trutas à moda do cozinheiro do Morgado de Mateus.
Mas… quando o pescador da Terra Quente subia até ao habitat delas e a cozinheira da casa fazia por presentear os convidados com a sua arte, era bem possível que fosse com um saber azeitado e de molho azeitonado [trutas com azeitonas] — misturando azeite, vinagre de vinho, cebola picada e azeitonas descaroçadas ou alcaparras delas esmagadas.
Carapaus ou chicharros, tanto se me dá!
São “tchitchárros” e não “tchítcharros”. Agora que se comiam grelhados ou fritos com chícharros e couves migadas, lá isso também é verdade. Confusões fonéticas e de escrita à parte, na minha Terra, carapaus são chichárros pequenos e chichárros são carapaus grandes. E quando não vinha apregoada a sardinha, o polvo ou o congro, o carapau é que não podia faltar. Cozinhá-los, assá-los, de forma diferente desta — carapaus com fiolho “à maneira dos ricos lá dos lados da Régua”, com uma boa esfregada de azeite, salsa e funcho picado — só de escabeche ou recheados de presunto como faziam com as trutas no tempo em que as havia no Varosa.
“Não há comida abaixo da sardinha, nem burro abaixo de jumento”.
Vá lá a gente entender este dito!
As populares sardinhas comem-se da forma mais simples:
fritas, as mais pequenas, assadas, as maiores. Assadas, são manjar imprescindível dos arraiais e verbenas dos Santos Populares [«Comeres conviviais»]; fritas, simples ou escabechadas, por todo o Vale do Douro e Terra Quente Transmontana, eram uma obrigação nos cadornos e merendas da apanha da amêndoa e vindimas (…). Noutros tempos, os braceros galegos que tanto ajudaram a erguer o Douro Vinhateiro tinham por hábito ajeitá-las de caldeirada [caldeirada de sardinhas] ou, então, emborrachá-las, cozendo-as numa aguada de vinho branco, adubos pretos – cabeças de cravinho, noz-moscada e grãos de pimenta – e sal [sardinhas borrachas que os durienses mais ricos adaptaram para sardinhas com vinho tinto, conforme me contaram na terra do meu pai, Sanhoane – Santa Marta de Penaguião].
No início do séc. XIX crê-se que cerca de 40 a 45% dos jeireiros nas escadavadas e vindimas durienses eram de filiação galega. Completavam o universo da proveniência da mão-de-obra: os montanheiros, longroivos, vareiros, minhotos e transmontanos, que também influenciaram as práticas gastro-alimentares desta região ribeirinha.
Por sua vez, na Terra Fria Transmontana, na época das sementeiras outonais, havia quem preferisse escarchá-las [sardinhas escarchadas ou sardinhas albardadas] numa massa de farinha e ovo, temperada de sal e pimenta, ou refogá-las numa boa tomatada com azeite, cebola rodelada, dentes de alhos esmagados e salsa esfarrapada sardinhas de tomatada. Quando faltavam na caixa da peixeira, ou estas já estavam demasiado tairrentas [“Quem vende sardinha, come galinha”], o recurso mais fácil era o enlatado — tradição que se enraizou no nosso dia-a-dia, principalmente após a consolidação das vias ferroviárias na região, a necessidade de suprir as quebras de exportação da indústria conserveira nos períodos do pós-guerra e a dinâmica daquela que foi a primeira grande fábrica de conservas alimentícias (Real Fábrica de Conservas Alimentícias Brandão, Gomes&C.ª, 1894-1950). E o mais vulgar era colocá-las por cima da calda do arroz – simples, de tomatada ou com espargos bravos – e deixar ferver mais um tantinho [arroz de sardinhas de lata].
Já não abundam enguias como antigamente, nadam mal
e não passam nas barragens (…)
Lamento dos pescadores da Foz do Sabor

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico




